“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre a Tortura dos Humanos e dos Animais (a propósito do livro de José Sócrates, do prefácio de Lula da Silva e do posfácio de Eduardo Lourenço)


O Público do passado Domingo (6.04.2014) pré-publicou o posfácio do professor e ensaísta Eduardo Lourenço à 2ª edição do livro do ex-primeiro-ministro José Sócrates, A Confiança no Mundo, onde este trata da persistência da prática institucional da tortura no mundo actual, nomeadamente em “nações-santuários da Democracia ocidental” como a França e os Estados Unidos. O ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, no seu prefácio ao livro, chama-lhe a “velha chaga que acompanha a história da humanidade há séculos e séculos” e continua a supurar “neste nosso mundo herdeiro das Luzes e suas libertadoras utopias”, acrescenta Eduardo Lourenço. José Sócrates considera a existência actual da tortura como “escândalo e contradição ética intolerável na perspectiva de uma ordem propriamente democrática” e isso confere ao seu livro, segundo Eduardo Lourenço, “uma função problematizadora da própria mitologia democrática sob a qual, em princípio, assenta a ordem ideal da chamada Civilização Ocidental e não só”.

Lourenço considera que a tortura, não sendo a única expressão do “Inumano”, é todavia “aquele acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro, aditando ser o único comportamento “que é acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana”. Recorda a esse respeito a conversão da tortura em “espectáculo” e “festa” nos países da Inquisição e no Portugal do tempo dos Távoras. Recorda também o que se passou ao longo do século XX nos campos de concentração nazis, estalinistas e de Pol Pot. E indigna-se perante a tortura no século XXI, em França e nos EUA, que ousa cruzar a linha de separação entre a “cultura democrática mítica” e a “mais clássica barbárie”, o que vê como “da ordem da abominação e da denegação prática e ideal da democracia”. A “História”, para o pensador, “é o eterno e nunca gasto combate para separar em nós e no mundo o que nos humaniza do que nos remete para a condição impensável mas nunca extinta do inumano”.

José Sócrates, Lula da Silva e Eduardo Lourenço têm obviamente razão e a maioria de nós reconhece-se nas suas palavras e sentimentos de indignação perante um acto tão bárbaro e inumano como a tortura. Mas infelizmente, eles e muitos de nós, vítimas do preconceito antropocêntrico e especista que domina a nossa cultura, esquecemos que a tortura de que são vítimas os seres humanos tem sido e é cada vez mais nos nossos dias uma manifestação apenas da inimaginavelmente mais ampla e cruel tortura que infligimos aos animais. Com efeito, pense-se em como são criados, (mal)tratados e abatidos os biliões de animais que anualmente usamos para nossa alimentação, vestuário, divertimento, experiências ditas científicas e trabalho. Biliões de vidas que, como as nossas, se manifestam em corpos e mentes sensíveis e vulneráveis à dor, ao medo e à angústia. Biliões de vidas que, como as nossas, aspiram à liberdade, à segurança e ao bem-estar e são arrancadas aos seus habitats naturais ou produzidas numa demência industrial para serem instrumentalizadas, violentadas, torturadas e destruídas sem a menor consideração pela sua alteridade e pelo seu estatuto de seres conscientes e sencientes. Ou seja, precisamente o mesmo, mas em muito maior escala, que atrás se definiu como a quinta-essência da tortura, expressão do “Inumano” e “acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro”, que muitas vezes, como nos circos, touradas e demais espectáculos, ainda é “acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana”.

A Antropologia e a História mostram que a escravatura e massacre dos animais serviu de modelo inspirador aos dos humanos. Como documenta o perturbador livro do historiador Charles Patterson, Eternal Treblinka, foi a invenção das cadeias de abate industrial nos matadouros de Chicago que inspirou as cadeias de montagem de viaturas de Henri Ford e os corredores de morte em massa dos campos de concentração nazis. Como diz uma personagem de Isaac Bashevis Singer, em The Letter Writer, perante um rato morto: “Todos estes eruditos, todos estes filósofos, os dirigentes do planeta, que sabem eles de alguém como tu? Persuadiram-se de que o humano, espécie pecadora entre todas, domina a criação. Todas as outras criaturas não teriam sido criadas senão para lhe fornecer comida e peles, para ser martirizadas, exterminadas. Para estas criaturas, todos os humanos são nazis; para os animais, é um eterno Treblinka”. Como escreve o Prémio Nobel de Literatura J. M. Coetzee, em The Lives of Animals: “Permitam-me dizê-lo abertamente: nós estamos rodeados por um empreendimento de degradação, crueldade e morte que ultrapassa tudo de que foi capaz o III Reich, na medida em que o nosso empreendimento é sem fim, se autoregenera e faz vir sem cessar coelhos, ratos, galinhas e gado ao mundo com o único objectivo de os matar”.

Assim é, caros José Sócrates, Lula da Silva e Eduardo Lourenço. As nossas sociedades e as nossas democracias, com a sua mitologia da liberdade (perdida que foi a da igualdade e da fraternidade), enraízam-se hipocritamente no inferno de uma tortura, uma barbárie e um holocausto sem precedentes. As nossas sociedades e as nossas democracias, mesmo quando são um pouco menos injustas para com os humanos, continuam a ser implacáveis tiranias e ditaduras para os animais. E se é escandalosa a tortura, que bem denunciam, mais escandaloso é o silêncio a que vós, enquanto líderes de opinião, e convosco tanta gente supostamente culta e bem pensante, vota o sofrimento dos animais. Dirão talvez: “não são senão animais”. Respondo-vos com as palavras de Theodor Adorno: “Auschwitz começa quando alguém olha para um matadouro e pensa: não são senão animais”.

Os ditos quase 70 anos de paz na Europa são na verdade 70 anos de guerra e violência aberta de uma espécie apenas, a humana, contra todas as demais espécies de seres vivos, extensiva aos recursos naturais do planeta. É por isso que chegou a Hora de pôr a nu esta violência camuflada. Chegou a Hora de revelar a profunda inumanidade que se encobre nas nossas práticas e discursos humanistas. Chegou a Hora do apocalipse, que etimologicamente não quer dizer catástrofe, mas sim revelação: revelação da barbárie escondida, que é a única via para a sua superação. Chegou a Hora dos advogados e defensores dos animais, de todos os animais, humanos e não-humanos. A Hora de uma Outra Democracia: a que cuide do bem do planeta e de todos os seres vivos.





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