“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Sejamos índios!

Andar o mínimo possível de carro ou mesmo transportes públicos e o máximo possível a pé. É menos poluente, mais saudável e energético e põe-nos mais em contacto com a realidade e a vida. Os transportes são caixas em movimento, extensão desses outros caixotes (ou caixões?), os apartamentos, em que a humanidade se encerrou para se diferenciar e proteger da natureza, do mundo e dos demais seres. O medo é a origem das cidades e da política, impossível sem o antropocentrismo.

Recuperar a saúde, a energia, a alegria e a amabilidade dos indígenas, como esses índios do futuro Brasil, descritos lapidarmente na carta de Pêro Vaz de Caminha como ícones de saúde e energia, numa dieta de cereais e legumes, e de alegria de viver e amizade para com os invasores desconhecidos que os haveriam de escravizar e destruir, os portugueses. Como escreveu Vaz de Caminha, numa notável sinceridade (cito de memória): "são muito mais nossos amigos que nós deles". 

Regresso cada vez mais à minha paixão, imaginário e herói de infância: ser um pele-vermelha, como esse grande chefe índio, Cavalo Louco (Crazy Horse), que nunca foi vencido pelos brancos, até ser assassinado à traição por outros índios pagos pelos norte-americanos. 

Sejamos índios! E desenterremos o machado da guerra, não-violenta, contra a estupidez e violência da actual civilização. 

O que é o Amor?



O que é o amor, essa palavra que tão fundo ressoa na mente e no coração humanos e tão intimamente se associa às maiores aspirações, sonhos, gratificações, medos e frustrações da humanidade em todos os tempos? Uma possível etimologia é o indo-europeu “amma”, que designa a expressão da criança que chama pela mãe. Daí pode ter vindo o latino “amare”, que significa “dar carícias de mãe”. Daqui haver quem defenda que “amar” se relaciona com “mamar” ou “amamentar”.

As múltiplas modalidades do amor desenvolvem-se porventura entre estas duas possibilidades extremas: o dom incondicional de si para o bem do outro, como uma mãe que oferece o seio ao recém-nascido sem esperar nada em troca, e o apego e sucção voraz da criança no seio materno, pois disso depende a sua sobrevivência. Entre estas duas experiências, e combinando-as de modo complexo, se estendem os múltiplos níveis da escala que Jean-Yves Leloup vê como o “arco-íris” do modo humano de viver a experiência amorosa. Consoante as suas designações na língua grega, teríamos assim, da forma mais condicionada à mais livre: 1) porneia, o amor como apetite devorador; 2) pothos, o amor como necessidade e carência possessiva; 3) mania, pathé, o amor como paixão e sedução igualmente possessiva; 4) eros, o amor vivido como interesse erótico; 5) philia, o amor amizade, nos seus vários níveis; 6) storgé, o amor ternura; 7) harmonia, o amor harmonioso e bondoso, primeiro nível do amor desinteressado; 8) eunoia, o amor como dedicação e compaixão; 9) charis, o amor como gratidão e celebração, sem porquê nem para quê; 10) agapé, o amor gratuito e incondicional, na tradição cristã idêntico a Deus [1], que não seria tanto um ser que ama, mas o próprio Amor.

Ao longo dos vários níveis desta escala sobe e desce a vivência humana do amor, quase sempre sem se fixar exclusivamente num deles de modo exclusivo de todos os outros, o que faz do amor um sentimento tão complexo e impenetrável aos olhos do próprio sujeito que ama. Cremos, com Jean-Yves Leloup, que o amor mais puro, livre e incondicional está igualmente presente em todos os níveis desta escala, assegurando a unidade de todas as formas de o viver, desde a mera potencialidade na base até à sua plena actualização no topo, sendo próprio da comum condição humana transitar de uma para outra destas várias modalidades de amar, conjugando-as por vezes em simultâneo a respeito dos mesmos objectos, seres e pessoas.

Na verdade, o que queremos dizer quando dizemos: “Amo-te”, essa declaração paradoxalmente tão tremenda e vulgar? “Estou aqui, completamente disponível para o teu bem, sem esperar retribuição ou reconhecimento”, ou “Quero prender-te e devorar-te, física, emocional ou mentalmente, como mero objecto que satisfaça a minha carência e substituto do seio ou chucha perdidos?”. Ou “Amo-te” quer dizer um complexo e confuso misto de tudo isso?

Ocorre citar aqui Agostinho da Silva: “[…] Sobretudo no amor se deve ter cuidado; gostar dos outros e lhes querer bem tem sido o motivo de muita opressão e de muita morte dos espíritos. […] Não tens, essencialmente, de amar nos outros senão a liberdade, a deles e a tua; têm, pelo amor, de deixar de ser escravos, como temos nós, pelo amor, de deixar de ser donos do escravo”.

Cabe na verdade perguntarmos e sobretudo perguntar-nos: Amor ou apEgo? Experiência de ser fonte que superabunda e sacia quem dela beber sem nada exigir em troca ou sensação de fome e sede indigente e ávida de satisfação, consolo e gratificação, que faz do outro um mero objecto de consumo? Da resposta e dos níveis de mistura e confusão entre um e outro depende boa parte do sofrimento humano em todos os tempos e lugares, como por experiência bem sabemos. Não é verdade?



[1] Cf. Catherine Bensaid e Jean-Yves Leloup, O Essencial no Amor. As diferentes faces da experiência amorosa, Petrópolis, Vozes, 2006, pp.126-128.

Por uma sociedade de abundância frugal, com menos produção e consumo e mais educação, ética, bem-estar e felicidade

Menos horas de trabalho para cada um para haver mais emprego para todos, menos impacto sobre a natureza e os seres vivos e mais tempo para viver, dedicado ao desenvolvimento pessoal, às relações afectivas e à criatividade. Por uma sociedade de abundância frugal, com menos produção e consumo e mais educação, ética, bem-estar e felicidade. Por uma vida mais livre e menos escrava do economicismo, das finanças e da política ao seu serviço. Sair da crise por cima. Não é utopia. Utopia é pensar que por este caminho vamos a lado algum que não seja o colapso ecológico-social.

terça-feira, 25 de junho de 2013

"Importa construir um novo ethos que permita uma nova convivência entre os humanos com os demais seres da comunidade biótica, planetária e cósmica"



“Em momentos críticos como os que vivemos, revisitamos a sabedoria ancestral dos povos e nos colocamos na escola de uns e outros. Todos nos fazemos aprendizes e aprendentes. Importa construir um novo ethos que permita uma nova convivência entre os humanos com os demais seres da comunidade biótica, planetária e cósmica; que propicie um novo encantamento face à majestade do universo e à complexidade das relações que sustentam todos e cada um dos seres”


- Leonardo Boff, Saber Cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra, Petrópolis, Editora Vozes, 2011, p.27.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O Universo és tu, tu és o universo

O universo és tu, tu és o universo. Tudo o que fizeres ou não fizeres aos outros a ti o fazes ou não fazes, em ti colhes o benefício ou o prejuízo. E os outros são todos, humanos e não-humanos: todos os que vivem e sentem, gozam e sofrem como tu, teus íntimos parentes, carne da tua carne, alma da tua alma. Desperta e cuida deles como a ti mesmo ou a um filho único. Desde já. A cada instante.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

O que esperar do Papa Francisco e de todos os líderes espirituais e religiosos? (texto publicado no livro de Paulo Aido, Francisco: o Papa dos Pobres, 2013)


           
Não quero nem posso, nem em termos pessoais, nem enquanto presidente da União Budista Portuguesa, avaliar o curto pontificado do Papa Francisco. Limitar-me-ei aqui a expressar, fundamentando-as, as aspirações que sinto em relação a este pontificado, bem como, em termos mais latos, relativamente a todos os líderes espirituais e religiosos no presente momento da história do ser humano no planeta Terra. Falo apenas em meu nome e não pretendo representar a posição oficial dos budistas portugueses ou da UBP.

            O mundo, como expressa o título do livro de Fritjof Capra, chegou a um Ponto de Mutação. A mudança profunda do paradigma globalizado que tem presidido ao nosso pensamento e comportamento, a nível pessoal e institucional, já não é hoje uma possibilidade apenas que dependa da nossa vontade e das nossas opções. A mudança está aí como uma necessidade decorrente do esgotamento e da crise desse mesmo paradigma, que a nível mundial mostra resultados cada vez mais contraditórios das aspirações com que foi implementado e da sua sustentabilidade sócio-económica e ecológica a curto prazo. Com efeito, vivemos hoje a desilusão, muitas vezes brutal, do projecto civilizacional técnico-científico, industrial e antropocêntrico da modernidade europeia-ocidental, desde há escassos três séculos (lapso de tempo irrisório na imemorial história do universo, da Terra e da humanidade) movido pela promessa e expectativa de progresso ilimitado no acesso da humanidade à felicidade, à abundância material e à liberdade mediante o domínio e instrumentalização da natureza e dos seres vivos, a exploração desenfreada dos seus recursos, a produção e consumo ilimitados e a transformação das condições sociais e materiais de existência por via política e económica visando emancipar uma espécie, a humana, da natureza, do sofrimento e dos limites inerentes à comum condição mortal de todos os viventes. Somos hoje cada vez mais confrontados, como escreveu Erich Fromm, com o “fracasso” e o “fim” da “ilusão” dessa nova religião que - avatar laico das expectativas messiânicas judaico-cristãs do Reino de Deus sobre a Terra (com o qual tanto sonhou entre nós o Padre António Vieira) - suscitou o entusiasmo e a fé cega de legiões de crentes e descrentes em todo o mundo capitalista e socialista, a da “Grande Promessa de Progresso Ilimitado” [1]. A crise e frustração geral da expectativa de um Paraíso terreno científico-tecnológico e político-económico, pouco após o seu aparecimento, converteu este sonho cor-de-rosa no negro pesadelo do sofrimento da guerra, fome e pobreza, do fosso entre pobres e ricos e entre Norte e Sul, da crise económico-financeira, da destruição da biodiversidade e da diversidade cultural, do sofrimento dos animais na indústria alimentar, da poluição do ar, da água e dos solos, das mutações climáticas, do esgotamento dos combustíveis fósseis, de desastres ecológicos sem precedentes e do risco de colapso ecológico-social. Tudo isto agravado pelo crescente mal-estar existencial e espiritual numa civilização que reprime e encerra o melhor dos seres humanos numa “normose” colectiva de “cadáveres adiados que procriam” (Fernando Pessoa), mas que cada vez mais constata que a felicidade que procura não reside no progresso nem na riqueza materiais, no prazer fugaz, na fama ou no poder, embora permaneça ainda globalmente incerta e céptica quanto a uma orientação alternativa para encontrar um sentido para uma vida que parece não o ter para largos sectores da população, onde dramaticamente se destacam muitos dos mais jovens, mergulhados, por não terem nos pais exemplos nem educadores, nas distracções hedonistas mais fúteis, na indiferença, no niilismo e na dependência, seja de psicotrópicos, álcool, emoções obscuras ou revolta estéril sem horizontes de criação e de sentido.
           
Este é o aspecto sombrio do actual ponto de mutação civilizacional, aquele em que as grandes ilusões vitais das quais sempre depende a maior parte da humanidade, como diria Nietzsche, deixaram de o ser, dissolvendo a sua eficácia numa ausência de referências que não é a da sua transcensão espiritual. Há todavia um inseparável aspecto luminoso de tudo isto, patente no crescente número de pessoas, grupos e movimentos que buscam alternativas ao esgotamento do actual paradigma civilizacional em todos os planos da actividade e da experiência humana - espiritual, cultural, educativo, terapêutico, ético-moral, social, económico, ecológico e político – e, sobretudo, na integração de todos eles num novo paradigma integral, global ou holístico, que reconheça a interconexão de todos os seres, saberes e práticas no corpo uno e múltiplo do unimultiverso. Das ruínas do velho mundo, como de um caos genesíaco, brotam rebentos de uma nova vegetação cheia de seiva e juventude, a de uma renascida inquietação espiritual, mental e social da humanidade que não se revê nem nas tradições cristalizadas nem na modernidade hoje não menos fóssil e aspira a uma outra pós-modernidade, não a do desalento ou da celebração do sistema pseudo-triunfante (Boaventura de Sousa Santos), mas a da ruptura inventiva de outras formas de habitar o mundo no respeito integral e na comunidade fraterna com todas as formas de vida. Nesta nova vegetação radica a promessa de novas flores e outros frutos, resultantes de imprevistas osmoses, simbioses e metamorfoses entre tradições e modernidade, bem como, sobretudo, da emergência de algo de novo e irredutível ao passado e ao presente. Como adverte Jesus, ninguém sabe de onde vem nem para onde vai o “que nasceu do Espírito” (João, 3, 8).

A mutação que se processa no mundo reclama naturalmente novos líderes que sejam capazes de ler os sinais dos tempos, viver em sintonia com o fluxo criador da vida e inspirar a mudança que urge, sendo exemplos e despertando cada vez mais consciências do sono espiritual, mental e institucional em que tendem a enclausurar-se. Novos líderes surgem e surgirão, em todos os domínios, com a característica dos novos tempos: sem confundir os planos da acção humana – espiritual, cultural, social, económica, política, etc. - , serem ao mesmo tempo capazes de os integrar numa visão sistémica e global, mais afim à natureza profunda das coisas do que às abstracções separativas da razão conceptual humana, tão dominante, em parceria com a razão calculadora e quantitativa, no ciclo civilizacional que finda, como expressão também de uma hipertrofiada masculinidade da mente divorciada do seu natural complemento na feminilidade dos afectos e da sensibilidade.

É aqui que se prefigura o enorme desafio que se abre ante o Papa Francisco e todos os líderes espirituais e religiosos do nosso tempo, para não falar de todos os outros. Vejo ante ele e ante eles alguns aspectos fundamentais desse desafio:

1 – Compreender e experimentar que o absoluto ou realidade última para que tende cada identidade e comunidade religiosa é igualmente transcendente a todas, como o seu fundo comum, não sendo posse exclusiva ou privilegiada de nenhuma.

2 – Compreender e experimentar que esse mesmo absoluto ou realidade última transcende inequivocamente todas as formas de representação (imagens, palavras, conceitos, acções físicas) e portanto todas as doutrinas teológico-filosóficas e práticas litúrgicas que o visem, não podendo reduzir-se a qualquer dogma ou ritual, sob risco de se cair na idolatria, trocando-o pelo endeusamento daquilo que a seu respeito o ser humano imagina, concebe, diz e faz.

3 – Compreender e experimentar que daí decorre haver muitas vias e experiências que podem disponibilizar os seres humanos para acederem a esse absoluto ou realidade última, não apenas as religiosas ou mesmo espirituais, mas também outras, incluindo as de quem se veja como ateu ou agnóstico.

4 – Compreender a partir daí a importância e urgência do encontro e do diálogo intercultural e inter-religioso, mas abrindo este a um encontro e diálogo mais amplo com agnósticos, ateus e todos aqueles que não se revirem em nenhuma destas etiquetas. Compreender que todos podem aprender com todos e que em cada via e comunidade religiosa tanto mais se progredirá no caminho para o absoluto ou realidade última quanto mais o viajante se abrir à compreensão e ao respeito de outras vias, caminhos e modos de caminhar, religiosos ou não, para o mesmo destino. Compreender também que toda a forma de encontro e de diálogo intercultural e inter-religioso se deve fundar em algo de mais profundo e radical, o silêncio transcultural e trans-religioso, do qual pode surgir a escuta atenta do outro -  não como estranho ou alheio, mas como irmão - e a palavra meditada e verdadeira. Compreender que o mais importante da religião é a espiritualidade, transversal a crentes e não-crentes, e que a espiritualidade reside no âmago de toda a experiência humana, não só naquelas rotuladas como “espirituais”.

5 – Compreender e experimentar que o absoluto ou a realidade última se manifesta igualmente, embora de diverso e irrepetível modo, em todos os seres e coisas, estando integralmente presente em cada um e na totalidade dos seres e fenómenos do unimultiverso. Compreender que a esta luz todos os seres e fenómenos são sagrados, sendo poderosas e preciosas epifanias da natureza primordial de tudo, e que todas as hierarquias tradicionalmente concebidas entre os seres são sempre relativas a pressupostos, perspectivas e critérios humanos e não inerentes ao mundo visto a partir do absoluto ou realidade última, como acontece nas mais profundas experiências espirituais, por vezes designadas como “místicas”. Compreender que todos os seres estão assim interligados no seio do absoluto ou realidade última, que todos são próximos, íntimos e inseparáveis e que todos possuem um valor intrínseco e não meramente instrumental. Compreender e experimentar que tudo quanto existe é a própria expressão gloriosa do absoluto ou realidade última, que o unimultiverso é sagrado e que o desencantamento do mundo nunca se deu, sendo apenas o desencantamento da subjectividade moderna que perdeu a capacidade de percepcionar e sentir a abissal profundidade de todos e de cada um dos fenómenos.

6 – Compreender que a partir daí não há nenhuma via para o absoluto ou realidade última que não exija uma ética global, do respeito, reverência e cuidado integrais por todas as formas de vida, humanas e não-humanas, bem como pelos ecossistemas e pela natureza dos quais todas essas vidas dependem e que são igualmente manifestações plenas e exuberantes desse absoluto ou realidade última.

7 – Compreender que toda a via para o absoluto ou realidade última é incompatível com a cumplicidade, alheamento, indiferença ou desconsideração a respeito da discriminação, opressão e exploração a que sejam sujeitos quaisquer seres, enquanto manifestações e ícones vivos desse absoluto ou realidade última. Compreender e praticar a necessidade de que a espiritualidade e a religião se exerçam na denúncia e no combate não-violento contra todas as formas dessa discriminação, opressão e exploração: religiosa, cultural, étnica, sexual, especista, social, económica e política. As identidades e comunidades espirituais e religiosas devem unir a sabedoria, o amor e a compaixão, a contemplação e a acção, as quais não se podem desenvolver isoladamente, promovendo novas formas de intervenção e acção no mundo, fundadas na descoberta da paz interior, da calma e da clareza mentais e espirituais mediante as práticas contemplativas e meditativas. Os líderes e as comunidades espirituais e religiosas devem convergir e unir-se para este fim, criando também plataformas de reflexão e acção convergente com grupos e movimentos laicos da sociedade civil no sentido da transformação urgente que o novo ciclo de todos pede.

8 – Compreender que os líderes espirituais e religiosos devem ser sempre os primeiros exemplos da mudança que querem ver no mundo, mantendo um espírito aberto, fraterno, altruísta e desinteressado, sem apego à riqueza material, ao poder, à fama e ao prestígio. Compreender que o verdadeiro líder é aquele que se apaga no absoluto ou realidade última e convoca todos a fazerem o mesmo, descobrindo que a verdadeira liderança é em todos a do espírito divino ou consciência desperta.

9 - No caso específico do Papa Francisco, e por todas as razões atrás referidas, é de esperar que a sua opção por este nome, assumindo a inspiração em São Francisco de Assis, integre abertamente na Igreja Católica a protecção dos animais e do planeta contra a predação devastadora do velho paradigma antropocêntrico, bem como a defesa dos pobres e excluídos da actual globalização tecnocientífica, industrial e capitalista, predominantemente os povos indígenas e do hemisfério Sul do planeta, exortando à urgência de um novo modelo económico, não dominado pela perversão anticristã da ganância e do lucro a todo o custo, própria da nova religião produtivista-consumista servida pelos novos profetas-pregadores do marketing e da publicidade ao serviço das grandes corporações e da finança internacional.

É de esperar que liberte definitivamente a Igreja Católica, fazendo jus ao seu próprio nome (católico significa em grego “segundo o todo” ou “universal”), do paradigma cultural europeu-ocidental, descentrando-a para se repensar a partir da totalidade das culturas planetárias e de um silêncio-diálogo fraterno com todas as tradições e religiões, sem esquecer ateus e agnósticos, como já antes do Concílio Vaticano II (e muito para além do que foi consagrado nesse Concílio) entre nós defendeu Agostinho da Silva.

É de esperar, por fim, que sob a sua liderança a Igreja Católica consagre o sacramento do Amor em detrimento da discriminação contra as formas homossexuais de o viver, aceite o acesso das mulheres ao sacerdócio e o matrimónio dos sacerdotes.

É de esperar, notamos, que com Francisco a Igreja retome a época áurea do bispo Prisciliano, o primeiro a ser condenado como herege pela instituição eclesiástica e mandado executar pelo poder secular, que no século IV permitia a pregação das mulheres e dos laicos nas igrejas, reconhecia o carisma de todos os crentes, exortava ao vegetarianismo, à comunhão eucarística no seio da natureza e à liberdade na utilização de evangelhos apócrifos. Prisciliano viveu nas províncias romanas da Galécia e da Lusitânia, onde suscitou um movimento espiritual alternativo que, segundo Jaime Cortesão e Agostinho da Silva, contribuiu para o surgimento de uma consciência colectiva diferenciada e terá sido um dos factores da constituição do futuro reino de Portugal.

          São estas as minhas maiores aspirações para o pontificado do Papa Francisco e para esse outro e mais essencial pontificado, o de todos nós, na missão de construirmos pontes (ponti-fex) e não muros entre todos os seres, povos, nações, culturas, religiões e irreligiões.

(Texto publicado no livro de Paulo Aido, Francisco: o Papa dos Pobres, Zebra Publicações, 2013).

           

           


           

           




[1] “A Grande Promessa de Progresso Ilimitado – a promessa de domínio da Natureza, de abundância material, de maior felicidade para o maior número de indivíduos, e de liberdade pessoal irrestrita – alimentou a esperança e a fé de inúmeras gerações desde o início da Revolução Industrial”; “A trindade da produção ilimitada, liberdade absoluta e felicidade irrestrita formaram o núcleo de uma nova religião”; “É importante visualizar a imensidão da Grande Promessa, as maravilhosas conquistas materiais e intelectuais da Revolução Industrial para podermos compreender o trauma que a constatação do seu fracasso está a produzir nos dias de hoje. Porque a Revolução Industrial falhou efectivamente no cumprimento da sua Grande Promessa” – Erich FROMM, Ter ou Ser? [1976], Lisboa, Editorial Presença, 1999, pp.13-14.