“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Cada corpo é um fruto da árvore do mundo

Cada corpo é um fruto da árvore do mundo. A forma é a cada momento diferente e única, mas a seiva que o anima circula por todos os corpos e vidas. Por isso aflorar a sua intimidade é colher sabores, fragrâncias e estremecimentos de tudo, desde o coração da Terra ao mais longínquo astro. É esse um dos segredos da sexualidade e do erotismo. E é isso que os revela sagrados.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O desafio da Política da Consciência

“Um político pensa na próxima eleição, um homem de Estado na próxima geração” – James Freeman Clarke. E uma consciência minimamente fraterna e desperta pensa no bem comum a todos os seres, humanos e não-humanos, presentes e futuros, bem como no respeito pela Terra, sem discriminações religiosas, étnicas, nacionais, linguísticas, sociais, sexuais ou de espécie. O presente e o futuro do mundo dependem de se promover cada vez mais, pela cultura, pela educação e pela intervenção cívica, o surgimento de consciências e corações formados em liberdade, igualdade e fraternidade, mas globais e universais. É este o desafio da Política da Consciência, a política do Futuro já Presente. É este o desafio de um novo Portugal, uma nova Europa e um Novo Mundo.

Uma educação que ensine a ser um melhor ser humano


(na foto: Martin Seligman)


“Martin Seligman, um dos fundadores da “psicologia positiva” (segundo a qual, para desabrochar na existência, não basta neutralizar as emoções negativas e perturbadoras, é também necessário favorecer a eclosão de emoções positivas), colocou a milhares de pais a seguinte questão: «Que desejam mais para os vossos filhos?». Na maioria, responderam: a felicidade, a confiança em si, a alegria, o desabrochar, o equilíbrio, a gentileza, a saúde, a satisfação, o amor, uma conduta equilibrada e uma vida plena de sentido. Em resumo, o bem-estar vem à cabeça do que os pais e mães desejam prioritariamente para os seus filhos.

«Que se ensina na escola?», perguntou de seguida Seligman aos mesmos pais e mães, que responderam: a capacidade de reflexão, a capacidade de se adaptar a um molde, as competências em línguas e matemática, o sentido do trabalho, o hábito de passar exames, a disciplina e o êxito. As respostas a estas duas questões praticamente não coincidem. As qualidades ensinadas na escola são indiscutivelmente úteis e na maioria necessárias, mas a escola poderia igualmente ensinar os meios de chegar ao bem-estar e à realização de si, em suma, ao que Seligman chama uma «educação positiva», uma educação que ensine também cada aluno a tornar-se um melhor ser humano”

- Matthieu Ricard, Plaidoyer pour l’altruisme. La force de la bienveillance, Paris, NiL éditions, 2013, pp.325-326.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A subida galopante do narcisismo. Uma das razões pelas quais os humanos são cada vez menos solidários.



“O principal risco do individualismo é degenerar em narcisismo, que se traduz nomeadamente por uma sobre-avaliação de si mesmo em relação aos outros. Estudos, realizados nos Estados Unidos, mostraram que 85% dos estudantes pensam, por exemplo, que são mais sociáveis do que a média e 90% que fazem parte dos 10% mais dotados. Não menos de 96% dos professores universitários estimam serem melhores pedagogos que os seus colegas e 90% dos condutores de automóveis (mesmo os que recentemente causaram um acidente!) estão persuadidos que conduzem melhor que os outros.
[...]
Em 1951, 12% dos adolescentes entre catorze e dezasseis anos estavam de acordo com a afirmação: “Eu sou alguém importante”. Em 1989, esta percentagem passou para 80%! A análise de dezenas de milhares de questionários mostrou que 93% dos alunos de classes do secundário tinham um score de narcisismo consideravelmente mais elevado em 2000 do que em 1980”

- Matthieu Ricard, Plaidoyer pour l’altruisme. La force de la bienveillance, 2013, pp.320 e 323-324.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O amor como fim das fronteiras


“Concedam-me a vossa indulgência enquanto especulo, meio a sério, que a vida bacteriana é a de uma quase constante felicidade extática, afim a um estado perpétuo de união sexual com o universo. Quando nós, humanos, nos envolvemos no relacionamento sexual, recuperamos, por alguns momentos, um estado de ser que foi outrora a linha de fundo da existência num tempo de maior união e menor separação. Quando “fazemos amor” deixamos cair as nossas fronteiras em muitos níveis. O eufemismo é apropriado, nada sendo o amor senão uma libertação das fronteiras que nos separam de outro ser. Uma vez que as bactérias mantêm tais fronteiras com muito menor vigilância do que os organismos nucleares, pode-se dizer delas que estão nessa medida em muito maior união amorosa com o mundo. Quão mais extaticamente feliz seria o estado que não admite quaisquer fronteiras, nem sequer as fronteiras homeostáticas de uma membrana bacteriana, ao qual se dá o nome de consciência cósmica, unidade com Deus ou amor universal. Podemos nós considerar a evolução, pela qual o eu se divide do todo e compete contra outros eus para sobreviver, como um distanciamento progressivo desse estado?”

- Charles Eisenstein, The Ascent of Humanity. Civilization and the Human Sense of Self, Berkeley, Evolver Editions, 2007, p.41.

Ecologia e Espiritualidade, com Paulo Borges e Marcelo Barros - Hoje - 18h - Anf. IV Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa


É hoje.

Ecologia e Espiritualidade: Qual o estatuto da Natureza e das entidades não-humanas numa perspectiva espiritual ou religiosa da Vida e da Realidade?

Oradores: Monge Marcelo Barros (na linha da Teologia da Libertação, Biblista e com obra publicada sobre o tema - Brasil) e Paulo Borges (presidente da União Budista Portuguesa; presidente do Partido pelos Animais e pela Natureza; Professor na Universidade de Lisboa, com obra publicada na linha de uma visão holística).

Ecology and Spirituality: the status of non-human entities within a spiritual or religious perspective of life and reality.

Moderador: Joaquim Cerqueira Gonçalves
Presidência da sessão: Carlos João Correia (CFUL); António Fernandes (Consolata)
Evento organizado com o apoio da SEA - Sociedade de Ética Ambiental

Entrada livre.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A epidemia do narcisismo...


A loucura a que chegámos...

“Alguns exemplos suplementares bastarão para dar conta das proporções atingidas pela epidemia do narcisismo. Nos Estados-Unidos, podem-se alugar os serviços de uma limusina, de um agente publicitário e de seis paparazzi que vos acompanham numa noite e em lugares públicos, vos metralham como se fossem uma celebridade enquanto gritam o vosso nome para que vocês olhem para a objectiva, o que tem como efeito atrair todos os olhares sobre vós. Impressionados, os transeuntes tiram-vos fotos com o seu portátil, enquanto no restaurante o chefe de mesa vos dá imediatamente a melhor mesa e vos trata com as maiores considerações. No dia seguinte, a agência dá-vos um exemplar de uma pseudo-revista “Gente” inteiramente consagrada a vocês e da qual fazem a capa. Tudo isto pela modesta soma de 3 000 dólares. A agência que organiza esta encenação «Celeb 4 A Day” («Célebre por um dia») está em plena expansão. A sua publicidade anuncia: «O nosso credo é que o Senhor e a Senhora Todo-o-Mundo merecem tanta atenção, senão mais, que as verdadeiras celebridades»”

“Segundo uma sondagem realizada em 2006, tornar-se célebre é a ambição principal dos jovens nos Estados-Unidos (51% da população de vinte e cinco anos). Um adolescente a quem se perguntou: «Que queres tu ser mais tarde?», respondeu: «Célebre». «Célebre em quê?» «Isso não tem importância, quero simplesmente ser célebre» […]
Mesmo a criminalidade é um meio de se tornar famoso, quando nenhum outro procedimento parece possível. Robert Hawkins, que matou nove pessoas num supermercado em Omaha, no Nebraska, em Decembro de 2007, escreveu, antes de cometer os seus assassínios e de se suicidar: «Imaginem só como me vou tornar célebre!»”

- Matthieu Ricard, Plaidoyer pour l’altruisme. La force de la bienveillance, Paris, NiL éditions, 2013, pp.325-326.

Hino Portugal dos Grandes



Hoje, que se celebram 3 anos da oficialização do PAN, recordo o Hino do Portugal dos Grandes, o Portugal do Futuro já Presente, cuja letra tive a grata oportunidade de escrever.

Hino Portugal dos Grandes

Da ocidental praia lusitana
Do finisterra europeu
Da noite do mundo como breu
Da noite da era que morreu
Outro Portugal se ergue
Irmão da Terra e do Céu

Rosto atlântico voltado ao oceano
Abraço armilar ao mundo
Vida Nova te espera
Renascida do azul profundo

Portugal dos Grandes
Coração vasto e fundo
Abraça todos os seres
Cria um Novo Mundo

Tua pátria todo o planeta
Todos os povos teus irmãos
Todas as vidas tua vida
Folhas, patas, asas, mãos

Quebra todas as amarras
Abre o peito, solta a voz
Desperta deste sono
O salvador somos nós

(3x)
Portugal dos Grandes
Coração vasto e fundo
Abraça todos os seres
Cria um Novo Mundo


O hino do Portugal dos Grandes não é um novo hino para Portugal. É um hino para um Novo Portugal, de todos os que se dedicam à solidariedade social, à protecção dos animais, das minorias e dos sectores mais desfavorecidos da população, à defesa das crianças, das mulheres e dos idosos, à luta contra a fome e a pobreza, à busca de alternativas espirituais, culturais, educativas, terapêuticas, económicas, ecológicas, sociais e políticas e que estão a caminhar no mesmo rumo, o de uma nova civilização, mais sã, consciente, ética e justa.

Foi apresentado no 10 de Junho de 2012 num evento público no Coreto do Jardim da Estrela em Lisboa.

Ideia: Richard Warrell
Letra: Paulo Borges
Música: Maestro António Victorino d'Almeida
Realização: Edgar Pêra

domingo, 12 de janeiro de 2014

"Além do amor e da simpatia, os animais possuem outras qualidades que no ser humano consideramos como qualidades morais”


“O capitão Stansbury encontrou, sobre as margens de um lago salgado do Utah, um pelicano velho e completamente cego que era muito gordo e que tinha de ser nutrido desde há muito pelos seus companheiros. M. Blyth informa-me que viu corvos indianos alimentar dois ou três dos seus companheiros cegos e eu tive conhecimento de um facto análogo observado num galo doméstico. Eu próprio vi um cão que jamais passava ao lado de um dos seus grandes amigos, um gato doente numa cesta, sem o lamber ao passar, o sinal mais certo de um bom sentimento no cão. […] Além do amor e da simpatia, os animais possuem outras qualidades que no ser humano consideramos como qualidades morais”

- Charles Darwin, A descendência do homem e a selecção sexual, 1891.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Regressar à autenticidade, regressar ao coração, regressar ao que não tem nome

Regressar à autenticidade, regressar ao coração, regressar ao que não tem nome: pelo amor, pela poesia, pela ciência, pela filosofia, pela arte, pela meditação, pela espiritualidade, pela política, por tudo isto junto ou por nada disto. Mas regressar. Regressar ao íntimo do mundo, aqui onde todos os seres são inseparáveis, aqui onde cantam e se silenciam as vozes de tudo, aqui onde sempre somos, pois daqui em verdade jamais saímos a não ser neste sonho ou pesadelo breve que tomamos por real. Regressar ao estar Desperto e, enquanto o sonho durar, realizar e viver desde já no melhor sonho possível para todos.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Eusébio


Que fique claro que reconheço e aprecio o enorme talento futebolístico de Eusébio. O que é todavia digno de ser reflectido, por ocasião desta onda emocional em torno da sua morte, é a tremenda necessidade que os portugueses, e com eles quase todos os povos, têm de mitos, símbolos e ídolos colectivos. Tal como é significativo, e dá que pensar, que quase sempre esses mitos, símbolos e ídolos colectivos sejam governantes, políticos, artistas e desportistas e muito mais dificilmente heróis éticos que consagraram a sua vida ao serviço desinteressado do bem comum. É muito mais fácil alguém tornar-se um mito em vida e após a morte se for um catalisador visível e espectacular de fortes emoções colectivas, ainda que no fundo não possa servir de exemplo de vida para ninguém, do que se for um obscuro cuidador e servidor da vida dos outros, sejam humanos ou animais. Todavia, como no fundo se sabe que essa mitificação é vã e desprovida de fundamento, procura-se justificá-la com razões mais veneráveis. É por isso que já se compara Eusébio a Nelson Mandela (e sabe-se lá a quem se comparará um dia Cristiano Ronaldo). É na verdade muito mais fácil fazer de um ser humano poderoso, famoso e popular um herói ético do que de um herói ético um homem popular, famoso e poderoso (pela recordação e cultivo do seu exemplo). É por isso que mais facilmente Afonso Henriques, Vasco da Gama, Salazar, Amália, Eusébio, Figo ou Cristiano Ronaldo são símbolos nacionais do que um Aristides de Sousa Mendes, que arriscou a sua posição e vida para salvar a dos outros, ou um pensador e educador como Agostinho da Silva que sempre viveu de acordo com ideais nobres, sendo o único professor a ser demitido do ensino oficial em 1935 por se recusar a cumprir a Lei Cabral, que obrigava os funcionários públicos a uma declaração de não pertencerem a nenhuma sociedade secreta (ele que não pertencia a nenhuma e passou a viver de explicações, tendo já mulher e filhos). Porque será que o povo e o poder instituído, numa estranha aliança, veneram os primeiros e tudo fazem para esquecer os segundos ou remetê-los para um modestíssimo lugar na memória colectiva? Seria demasiado perigoso e desestabilizador do sonambulismo mental e social dominante assumir como exemplos a seguir, não o poder, os grandes feitos históricos, a fama e a popularidade, mas a ética do despojamento do egoísmo e a missão de despertar consciências? Sim, seria demasiado perigoso: arriscávamo-nos a ser um país a sério e a ter um sentido para a vida, em vez de andarmos anestesiados com emoções fugazes da opressão em que vivemos e suportarmos tanta mediocridade reinante.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Estamos no mundo ou somos o mundo?

Andamos sobre a Terra ou somos a Terra a andar? Sentimos a natureza ou somos a natureza a sentir-se? Pensamos a realidade ou somos a realidade a pensar-se? Concebemos o universo ou somos o universo a conceber-se? Estamos no mundo ou somos o mundo?

domingo, 5 de janeiro de 2014

Uma classe política, de comentadores e de jornalistas que ultrapassou há muito o prazo de validade

Na televisão e na restante comunicação social o pouco tempo e espaço que resta da lavagem ao cérebro publicitária e das distracções com telenovelas, concursos e futebol continua a ser constantemente preenchido por políticos, economistas, comentadores e entrevistadores que só falam de mais do mesmo, debates entre um governo e uma oposição igualmente falhos de ideias e alternativas, tricas politiqueiras e discursos económico-financeiros segundo o mesmo modelo que nos conduziu ao abismo em que estamos. Ligar a televisão e até ler muitos jornais tem quase sempre um efeito repulsivo, hipnótico ou soporífero. Ninguém fala das questões contemporâneas realmente importantes e urgentes, em termos nacionais e mundiais, que preocupam a comunidade científica e as consciências mais despertas. Como por exemplo o crescente mal-estar na civilização e a falta de sentido para a vida, o aumento dos suicídios e dos comportamentos antisociais (a começar pelos das elites no poder), o esmagamento das populações não só pelo desemprego, mas também pelo trabalho e pela burocracia, a ameaça de repetição do pior do século XX com o renascer dos nacionalismos e da xenofobia, a urgência de uma democracia participativa que permita aos eleitores controlar os eleitos e impeça a corrupção, a necessidade de uma nova economia que não acumule mais riqueza numa minoria, não empobreça e exclua a maioria e não destrua o planeta e os seres vivos, o desafio de tornar as nações e as regiões mais sustentáveis em termos alimentares e de energias renováveis, o imperativo de inverter a destruição acelerada da biodiversidade, dos ecossistemas e da diversidade cultural, medidas drásticas para impedir as mudanças climáticas que podem causar a extinção da própria humanidade, o colapso do sistema de saúde e educativo e da escola como formadora de consciências, a tremenda nocividade do consumo crescente de carne e lacticínios, os direitos humanos, dos animais, da natureza e das gerações futuras de humanos e não humanos. Temos mesmo uma classe política, de comentadores e de jornalistas que ultrapassou há muito o prazo de validade. E arriscamo-nos a seguir o mesmo triste caminho se não mudamos urgentemente.

O Fado: paixão pura, gratuita, (...) "dom sagrado"


"E fica a Voz, uma voz dorida que sai das entranhas como a flama de um lume que a tudo consome. Paixão pura, gratuita, sem outro fim senão o de arder, tanto maior quanto mais se oferta: "dom sagrado".

Dos becos e vielas do coração obscuro de Lisboa ou dos salões da aristocracia castiça uma mesma Voz se ergue, quando o crepúsculo reabsorve na treva as femininas formas da cidade branca e rosa. O vento, que outrora engravidava as éguas no Monte Santo, vem agora dedilhar as cordas de uma guitarra portuguesa. O Tejo empresta a frescura e o ritmo das suas vagas. E as ninfas, sereias e tritões tomam forma humana, vestem-se de negro, à luz da Lua, para ficarem mais nus, mais íntimos à Noite absoluta. Então as Musas, as camonianas Musas, sopram: a celebração começa.”

- Paulo Borges, "O Fado", in Do Finistérreo Pensar, 2001.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

"Não é o céu um pai e a terra uma mãe, e não são todas as criaturas vivas com pés, asas ou raízes seus filhos?"


“É a história de toda a vida que é sagrada e vale a pena contar, a história dos de duas pernas em comunhão com os de quatro pernas, das asas que cruzam os ares e de todas as coisas verdes; pois todos somos filhos da mesma mãe e o nosso pai é um só Espírito.
[...]
Não é o céu um pai e a terra uma mãe, e não são todas as criaturas vivas com pés, asas ou raízes seus filhos? [...] a terra, de onde viemos e em cujo seio, como meninos, mamamos toda a nossa vida, juntamente com todos os animais, pássaros, árvores e ervas”

- Alce Negro, in “Alce Negro Fala. A história da vida de um homem-santo dos Sioux Oglala”, contada por intermédio de John G. Neihardt (Arco-Íris Flamejante), Lisboa, Antígona, 2000, pp.25-27.

Entrar na Grande Empatia, na Grande Conversa e na Grande Lucidez

Como diz Thomas Berry, “quebrámos a grande conversa” e assim “despedaçámos o universo”. Estamos apenas a falar connosco próprios, humanos, e cada vez mais virtual e menos profundamente. Na verdade, estamos sobretudo a tornar-nos cada vez mais autistas, fechados num monólogo ensurdecedor com os nossos pensamentos e preocupações. Essa é a raiz de muitos desastres.

Há que reatar a “grande conversa”. Em vez de vivermos isolados no nosso ruído mental e emocional, silenciar a mente para escutar e contemplar a portentosa e prodigiosa vida do universo da qual somos inseparáveis. Escutar e contemplar, seus arrogantes filhos mais recentes, as coisas primordiais, vastas e profundas. O uivo do vento, o cair da chuva, as estranhas formas das nuvens, o brilho dos astros, o rumor do oceano, o silêncio da terra, o crepitar do fogo, o ondulante murmúrio das florestas, o canto da matéria obscura, a luz, as sombras e as trevas do mundo.

Escutar e contemplar também os nossos companheiros na grande aventura cósmica, os animais. O ladrar do cão, o miar do gato, os gritos longínquos das gaivotas, o uivo dos lobos, o bramido dos elefantes, o silvo das serpentes, o zumbido das abelhas, o lento rastejar do caracol.

Contemplar e escutar na multidão de formas e movimentos do Grande Todo a revelação contínua de quem realmente somos, este ser ilimitado que as fronteiras da pele de um corpo humano não podem conter. Captar as mensagens que em linguagens e línguas múltiplas constantemente se nos dirigem, expressando ideias, sentimentos e sensações para as quais as pobres mentes e línguas humanas não têm conceitos nem palavras. Despertar. Deixar de ser surdos e cegos para a grande conversa e convívio cósmicos.

Escutar a voz da terra, das fontes, dos rios, das plantas, das pedras, do vento, dos planetas, das estrelas. A voz da formiga e da aranha, do cavalo e do javali, do tigre e da borboleta. E falar então, falar com tudo e com todos. Falar com os rios, as tartarugas e os peixes, os montes, as codornizes e os lagartos, os bosques, os pássaros e os esquilos, as montanhas, as águias e os falcões, as grutas, as salamandras e as lesmas, as florestas, a lua e as corujas, os mosquitos, os charcos e o sol. Falar com palavras e em silêncio, confidenciar-lhes a nossa intimidade e sermos fiéis confidentes da sua. Escutar e dialogar no coro das vozes do mundo, aprendendo tudo o que se não ensina nas escolas do verbo íntimo que por todas perpassa, sentindo inseparáveis de nós as presenças e vidas invisíveis e sagradas que em todas se manifestam.

Abrir e alargar a consciência da sociedade dos humanos à imensa comunidade e comunhão cósmicas. Os cegos, surdos e mudos que só ouvem e falam à escala humana, os débeis de espírito que só lêem e compreendem livros e coisas escritas e se encerram nas artes, ciências e letras, os estreitos de coração que só trocam afectos com o animal humano, os falhos de comunicação que a limitam à tecnologia e aos media, poderão chamar-te louco e rir-se de ti, mas esse é o ridículo preço a pagar por te curares da loucura que eles têm por normalidade e entrares na Grande Empatia, na Grande Conversa e na Grande Lucidez.