“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Oito pontos para um encontro e diálogo inter-religioso mais plenos e para uma cidadania mais esclarecida e activa


O mundo, como expressa o título do livro de Fritjof Capra, chegou a um Ponto de Mutação. A mudança profunda do paradigma globalizado que tem presidido ao nosso pensamento e comportamento, a nível pessoal e institucional, e que é baseado no antropocentrismo, no egocentrismo e na visão dos seres vivos como entidades separadas, já não é hoje somente uma possibilidade que dependa das nossas opções. A mudança está aí como uma necessidade decorrente do esgotamento e da crise desse mesmo paradigma, que a nível mundial mostra resultados cada vez mais contraditórios das aspirações com que foi implementado e da sua sustentabilidade sócio-económica e ecológica a curto prazo.

A mutação que se processa no mundo reclama naturalmente novas consciências espirituais e religiosas e novos líderes que sejam capazes de ler os sinais dos tempos, viver em sintonia com o fluxo criador da vida e inspirar a mudança que urge, sendo exemplos e despertando cada vez mais consciências do sono espiritual, mental e institucional em que tendem a enclausurar-se. Novas consciências e líderes surgem e surgirão, em todos os domínios, com a característica dos novos tempos: sem confundir os planos da acção humana – espiritual, cultural, social, económica, política, etc. - , serem ao mesmo tempo capazes de os integrar numa visão sistémica e global, mais afim à natureza profunda das coisas do que às abstracções separativas da razão conceptual humana, tão dominante, em parceria com a razão calculadora e quantitativa, no ciclo civilizacional que finda, como expressão também de uma hipertrofiada masculinidade da mente divorciada do seu natural complemento na feminilidade dos afectos e da sensibilidade.

Abre-se assim um enorme desafio para todas as consciências e líderes espirituais e religiosos do nosso tempo, bem como para todos os outros. Eis o que, numa proposta transversal a todas as tradições espirituais e religiosas, me parecem ser os pontos fundamentais desse desafio, no que respeita a um encontro e diálogo inter-religiosos mais plenos e a uma cidadania mais esclarecida e activa, por parte das comunidades espirituais e religiosas.

1 – Compreender e experimentar que o divino, o absoluto ou realidade última para que tende cada identidade e comunidade religiosa é igualmente transcendente a todas, como o seu fundo comum, não sendo posse exclusiva ou privilegiada de nenhuma delas.

2 – Compreender e experimentar que esse mesmo divino, absoluto ou realidade última transcende inequivocamente todas as formas de representação (imagens, palavras, conceitos, acções físicas) e portanto todas as doutrinas teológico-filosóficas e práticas litúrgicas que o visem, não podendo reduzir-se a qualquer dogma ou ritual, sob risco de se cair na idolatria, trocando-o pelo endeusamento daquilo que a seu respeito o ser humano imagina, concebe, diz e faz.

3 – Compreender e experimentar que daí decorre haver muitas vias e experiências que podem disponibilizar os seres humanos para acederem a esse divino, absoluto ou realidade última, não apenas as religiosas ou mesmo espirituais, mas também outras (de natureza ética, estética, social, política, etc.), incluindo as de quem se veja como ateu ou agnóstico.

4 – Compreender a partir daí a centralidade e urgência do encontro e do diálogo interculturais e inter-religiosos, mas abrindo estes a um encontro e diálogo mais amplos com agnósticos, ateus e todos aqueles que não se revirem em nenhuma destas etiquetas. Compreender que todos podem aprender com todos e que em cada via e comunidade religiosa tanto mais se progredirá no caminho para o divino, absoluto ou realidade última quanto mais o viajante se abrir à compreensão e ao respeito de outras vias, caminhos e modos de caminhar, religiosos ou não, para o mesmo destino. Compreender também que toda a forma de encontro e de diálogo intercultural e inter-religioso se deve fundar em algo de mais profundo e radical, o silêncio transcultural e trans-religioso, do qual pode surgir a escuta atenta do outro - não como estranho ou alheio, mas como irmão - e a palavra meditada e verdadeira. Compreender que o mais importante da religião é a espiritualidade, transversal a crentes e não-crentes, e que a espiritualidade – ou seja, a expansão fraterna da consciência - reside no âmago de toda a experiência humana, não só naquelas rotuladas como “religiosas” ou “espirituais”.

5 – Compreender e experimentar que o divino, o absoluto ou a realidade última se manifesta igualmente, embora de diverso e irrepetível modo, em todos os seres e coisas, estando integralmente presente em cada um e na totalidade dos seres e fenómenos do unimultiverso. Compreender que a esta luz todos os seres e fenómenos são sagrados, sendo poderosas e preciosas epifanias da natureza primordial de tudo, e que todas as hierarquias tradicionalmente concebidas entre os seres são sempre relativas a pressupostos, perspectivas e critérios humanos e não inerentes ao mundo visto a partir desse divino, absoluto ou realidade última, como acontece nas mais profundas experiências espirituais, por vezes designadas como “místicas”. Compreender que todos os seres estão assim interligados no seio do divino, absoluto ou realidade última, que todos são próximos, íntimos e inseparáveis e que todos possuem um valor intrínseco e não meramente instrumental. Compreender e experimentar que tudo quanto existe é a própria expressão gloriosa do absoluto ou realidade última, que o unimultiverso é sagrado e que o desencantamento do mundo nunca se deu, sendo apenas o desencantamento da mente e da subjectividade que transitoriamente perdeu a capacidade de percepcionar e sentir a abissal e íntima profundidade de todos e de cada um dos seres e fenómenos.

6 – Compreender que a partir daí não há nenhuma via para o divino, absoluto ou realidade última que não exija uma ética global, do respeito, reverência e cuidado integrais por todas as formas de vida, humanas e não-humanas, bem como pelos ecossistemas e pela natureza dos quais todas essas vidas dependem e que são igualmente manifestações plenas e exuberantes desse divino, absoluto ou realidade última.

7 – Compreender que toda a via para o divino, absoluto ou realidade última é incompatível com a cumplicidade, alheamento, indiferença ou desconsideração a respeito da discriminação, opressão e exploração a que sejam sujeitos quaisquer seres, enquanto manifestações e ícones vivos desse divino, absoluto ou realidade última. Compreender e praticar a necessidade de que a espiritualidade e a religião se exerçam na denúncia e no combate não-violento contra todas as formas dessa discriminação, opressão e exploração: religiosa, cultural, étnica, sexual, especista, social, económica e política. As identidades e comunidades espirituais e religiosas devem unir a sabedoria, o amor e a compaixão, a contemplação e a acção, as quais não se podem desenvolver isoladamente, promovendo novas formas de intervenção e acção no mundo, fundadas na descoberta da paz interior, da calma e da clareza mentais e espirituais mediante as práticas contemplativas e meditativas. Os líderes e as comunidades espirituais e religiosas devem convergir e unir-se para este fim, criando também plataformas de reflexão e acção convergentes com grupos e movimentos laicos da sociedade civil no sentido da transformação urgente que o novo ciclo cultural e civilizacional de todos pede.

8 – Compreender que as consciências e os líderes espirituais e religiosos devem ser sempre os primeiros exemplos da mudança que querem ver no mundo, mantendo um espírito aberto, fraterno, altruísta e desinteressado, sem apego à riqueza material, ao poder, à fama e ao prestígio. Compreender que o verdadeiro líder é aquele que se apaga no divino, absoluto ou realidade última e convida todos a fazerem o mesmo, descobrindo que a verdadeira liderança é em todos a do espírito divino ou da consciência desperta.

Estou convicto de que a simples ponderação e discussão destes pontos, ou de alguns deles, permitirá dar passos substanciais para um encontro e diálogo inter-religioso mais plenos e para uma cidadania mais esclarecida e activa por parte das comunidades espirituais e religiosas.

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