“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Por um novo paradigma mental, ético e civilizacional (artigo para a CAIS de Setembro)



Vivemos uma profunda crise do paradigma que dominou a humanidade europeia-ocidental e se mundializou: nele o homem vê-se como centro e dono do mundo, reduzindo natureza e seres vivos a objectos desprovidos de valor intrínseco, meros meios destinados a servir fins e interesses humanos [1]. Se a tecnociência contemporânea confiou no progresso geral da humanidade mediante a exploração ilimitada dos recursos naturais e dos seres vivos, frustra-se hoje essa expectativa de um Paraíso terreno científico-tecnológico-económico: o sonho dos projectos neoliberais e socialistas converteu-se no pesadelo da guerra, fome e pobreza, da crise económico-financeira, da destruição da biodiversidade, do sofrimento humano e animal e da iminência de colapso ecológico. Os relatórios científicos mostram o tremendo impacte que o actual modelo de crescimento económico tem sobre a biosfera planetária, acelerando a sexta extinção em massa do Holoceno, com uma redução drástica da biodiversidade, sobretudo nos últimos 50 anos, a um ritmo que chega a 140 000 espécies de plantas e animais por ano, devido a causas humanas: destruição de florestas e outros habitats, caça e pesca, introdução de espécies não-nativas, poluição e mudanças de clima [2].

Manifestação particularmente violenta do antropocentrismo é o especismo, preconceito pelo qual o homem discrimina os membros de outras espécies animais por serem diferentes, mediante um critério baseado no tipo de inteligência que possuem que ignora a sua comum capacidade de sentirem dor e prazer físicos e psicológicos (a senciência, ou seja, a sensibilidade e o sentimento conscientes de si, distinto da sensitividade das plantas) ou o serem sujeitos-de-uma-vida, consoante as perspectivas de Peter Singer e Tom Regan [3]. A exploração ilimitada de recursos naturais finitos e dos animais não-humanos para fins alimentares, (pseudo-)científicos, de trabalho, vestuário e divertimento, tem causado um grande desequilíbrio ecológico e um enorme sofrimento. O especismo é afim a todas as formas de discriminação e opressão do homem pelo homem, como o sexismo, o racismo e o esclavagismo, embora sem lograr ainda o reconhecimento e combate de que estas têm sido alvo.

A desconsideração ética do mundo natural e da vida animal não só obsta à evolução moral da humanidade como também a lesa, lesando o planeta, como é particularmente evidente nos efeitos do consumo de carne industrial e de lacticínios. Além do sofrimento dos animais, criados em autênticos campos de concentração [4], além da nocividade da sua carne, saturada de antibióticos e hormonas de crescimento [5], a pecuária intensiva é um mau negócio com um imenso impacte ecológico: entre outros índices, destaque-se que toda a proteína vegetal hoje produzida no mundo para alimentar animais para consumo humano poderia nutrir directamente 2 000 milhões de pessoas, quase um terço da população mundial, enquanto 1 000 milhões padecem fome [6]. Isto leva a ONU a considerar urgente uma dieta sem carne nem lacticínios para alimentar de forma sustentável uma população que deve atingir os 9.1 biliões em 2050 [7].

Compreende-se assim a urgência de um novo paradigma mental, ético e civilizacional que veja que as agressões aos animais e à natureza são agressões da humanidade a si mesma, que não separe as causas humanitária, animal e ecológica e que reconheça valor intrínseco e não apenas instrumental aos seres sencientes e ao mundo natural, consagrando juridicamente o direito dos primeiros à vida e ao bem-estar e o do segundo à preservação e integridade (no que respeita aos animais, note-se que Portugal possui um dos Códigos Civis mais atrasados, considerando-os meras coisas móveis (!), o que urge alterar) [8]. Sem este novo paradigma, de uma nova humanidade, não antropocêntrica, em que o homem seja responsável pelo bem de tudo e de todos [9], não parece viável haver futuro.

 







[1] Kant considera o homem o “senhor da natureza”, que tem nele o seu “fim último” – Critique de la faculté de juger, 83, Paris, Vrin, 1982. O mesmo autor considera que os animais “não têm consciência de si mesmos e não são, por conseguinte, senão meios em vista de um fim. Esse fim é o homem”, que não tem “nenhum dever imediato para com eles” – Leçons d’éthique, Paris, LGF, 1997, p.391.
[2] A equipa internacional liderada pelo biólogo Miguel Araújo, da Universidade de Évora, publicou recentemente um importante artigo na revista Nature sobre as consequências na “árvore da vida” das mutações climáticas antropogénicas: http://www.nature.com/nature/journal/v470/n7335/full/nature09705.html
[3] Cf. Peter Singer, Libertação Animal [1975], Porto, Via Óptima, 2008; Tom Regan, The Case for Animal Rights [1983], Berkeley, University of California Press, 2004, 3ª edição. Peter Singer segue a perspectiva utilitarista herdada de Jeremy Bentham e baseia-se na igualdade de interesses dos animais humanos e não-humanos em experimentarem o prazer e evitarem a dor, enquanto Tom Regan estende a muitos dos animais não-humanos a perspectiva deontológica de Kant, considerando-os indivíduos com identidade, iniciativas e objectivos e assim com direitos intrínsecos à vida, à liberdade e integridade. Cf. Os animais têm direitos? Perspectivas e argumentos, introd., org. e trad. de Pedro Galvão, Lisboa, Dinalivro, 2011.
[4] Cf. Peter Singer, Libertação Animal; Jonathan S. Foer, Comer Animais [2009], Lisboa, Bertrand, 2010.
[5] Segundo a Organização Mundial de Saúde, mais de 75% das doenças mais mortais nos países industrializados advêm do consumo de carne.
[6] A produção de 1 kg de carne de vaca liberta mais gases com efeito de estufa do que conduzir um carro e deixar todas as luzes de casa ligadas durante 3 dias, consome 13-15 kg de cereais/leguminosas e 15 000 litros de água potável, cuja escassez já causa 1.6 milhões de mortes por ano e novos ciclos bélicos (http://www.ambienteonline.pt/noticias/detalhes.php?id=7788); a pecuária intensiva é responsável por 18% da emissão de gases com efeito de estufa a nível mundial, como o metano, emitido pelo gado bovino, que contribui para o aquecimento global 23 vezes mais do que o dióxido de carbono; 70% do solo agrícola mundial destina-se a alimentar gado e 70% da desflorestação da selva amazónica deve-se à criação de pastagens e cultivo de soja para o alimentar - cf. um relatório de 2006 da FAO, Food and Agriculture Organization, da ONU, Livestock’s Long Shadow: environmental issues and options: http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM
[7] http://www.guardian.co.uk/environment/2010/jun/02/un-report-meat-free-diet
[8] Para uma introdução às diferentes perspectivas e questões filosóficas, éticas e jurídicas relacionadas com a natureza e os animais, cf. Fernando Araújo, A Hora dos Direitos dos Animais, Coimbra, Almedina, 2003; Maria José Varandas, Ambiente. Uma Questão de Ética, Lisboa, Esfera do Caos, 2009; Stéphane Ferret, Deepwater Horizon. Éthique de la Nature et Philosophie de la Crise Écologique, Paris, Seuil, 2011.
[9] Cf. Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung, Frankfurt am Mein, Insel Verlag, 1979; Paulo Borges, "A questão dos direitos dos animais. Para uma genealogia e fundamentação filosóficas", in Hélder Martins Leitão, A Pessoa, a Coisa, o Facto no Código Civil, Porto, Almeida & Leitão, Lda, 2010, pp.229-251; “Quem é o meu próximo? Senciência, empatia e ilimitação”, Philosophica, nº40 (Lisboa, 2012), pp.25-40; Quem é o meu próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma nova civilização, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (no prelo).

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