terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A Felicidade (texto publicado no número de Dezembro da revista CAIS)


Pediram-me que escrevesse sobre a Felicidade como caminho para o Desenvolvimento. Compreendo o tema, mas não me parece que a felicidade possa ser um meio. A felicidade é antes um fim, que só pode ser alcançado Aqui-Agora. O verdadeiro des-envolvimento, o da consciência livre de tudo o que a envolve, é a Felicidade. Não o progresso material ou tecnocientífico, nem o crescimento económico, mas a Felicidade enquanto fruição plena da Vida inseparável da verdade e do amor.

A verdade é o desvelar da natureza profunda da realidade. É uma experiência de abertura sem limites, a sabedoria: não um conhecimento intelectual, mas o saborear a plenitude da vida. Os gregos chamaram-lhe aletheia – não-esquecimento, des-velamento – e os indianos satya, de sat, ser, o que é, o real. A verdade é não trocar o real, tudo o que se manifesta aqui e agora, a cada instante, por preocupações com o passado e o futuro e por palavras, conceitos e imagens oriundos das nossas percepções, interpretações e juízos limitados. A etimologia de real evoca a riqueza, a abundância. A natureza das coisas é exuberante, plena de todas as possibilidades: a verdade e a sabedoria são a experiência disso no presente, pois só aqui-agora mesmo a vida se oferece.

A verdade jamais se pode reduzir a uma definição, doutrina ou símbolo. Convida a transcender conceitos, imagens e palavras numa experiência contemplativa e silenciosa que pacifica e liberta da agitação mental e emocional que turva a consciência. A verdade torna-nos autênticos, confiantes e generosos, sentindo a nossa constante ligação a algo mais vasto que abrange tudo quanto existe e se não pode dizer, mas se experiencia nos momentos mais plenos das nossas vidas, que nos arrebatam de maravilhamento, gratidão e amor.

O amor é o sentimento natural de um coração conectado com o real, sensível à interconexão de todas as formas de vida e que activamente aspira à felicidade de todos os seres, sem nada esperar em troca. O pleno amor é infinito, universal e incondicional e desenvolve-se alargando a cada vez mais vidas a aspiração a que nós e os entes queridos sejamos plenamente felizes. O verdadeiro amor surge quando esse desejo de felicidade abrange todo o universo e todas as expressões da vida, sentindo-as a todas como íntimas. Com ele surge então a verdadeira felicidade.

Íntima à verdade e ao amor, a felicidade não é o prazer fugaz nem a mais intensa alegria, mas um estado duradouro e íntimo de profunda satisfação que não depende do que possa acontecer ou não, se possa ganhar ou perder ou aumentar e diminuir. A genuína felicidade é livre de medo e expectativa e expressa a plenitude de ser, o florescimento da consciência e do afecto na ilimitada compreensão e amor do mundo e de todas as formas de vida. A mais profunda felicidade integra e supera a dor, o sofrimento e o conflito e transcende a inquietação e ansiedade ainda inerentes à busca de ser feliz.

A verdadeira felicidade é um sentimento de realização do sentido da vida, uma sensação de integridade e perfeição, por maior que seja ainda o horizonte de crescimento que ante nós se abre, uma experiência de não estarmos a falhar o alvo e a passar ao lado da nossa única e mais autêntica vocação: a de sermos felizes. É sugestivo que pecado seja a tradução latina do grego amartia, que significa “falhar o alvo”. Ser feliz é sentir que a flecha da vida acerta no seu alvo: a plenitude, que muitas tradições designam como salvação, Deus, despertar, iluminação ou libertação.

A genuína felicidade é uma serena bem-aventurança para além das palavras. Nela não estamos sós, pois aí todos os seres e coisas comungam. A mais profunda felicidade é simultaneamente o mais íntimo e cósmico dos acontecimentos, o esplendor de cada consciência e de todo o universo, a poderosa, ampla e serena Festa da Vida. Para a qual todos somos desde sempre e a cada instante convidados.




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