Não quero nem
posso, nem em termos pessoais, nem enquanto presidente da União Budista Portuguesa,
avaliar o curto pontificado do Papa Francisco. Limitar-me-ei aqui a expressar,
fundamentando-as, as aspirações que sinto em relação a este pontificado, bem
como, em termos mais latos, relativamente a todos os líderes espirituais e
religiosos no presente momento da história do ser humano no planeta Terra. Falo
apenas em meu nome e não pretendo representar a posição oficial dos budistas
portugueses ou da UBP.
O
mundo, como expressa o título do livro de Fritjof Capra, chegou a um
Ponto de Mutação. A mudança profunda do
paradigma globalizado que tem presidido ao nosso pensamento e comportamento, a
nível pessoal e institucional, já não é hoje uma possibilidade apenas que
dependa da nossa vontade e das nossas opções. A mudança está aí como uma
necessidade decorrente do esgotamento e da crise desse mesmo paradigma, que a
nível mundial mostra resultados cada vez mais contraditórios das aspirações com
que foi implementado e da sua sustentabilidade sócio-económica e ecológica a
curto prazo. Com efeito, vivemos hoje a desilusão, muitas vezes brutal, do
projecto civilizacional técnico-científico, industrial e antropocêntrico da
modernidade europeia-ocidental, desde há escassos três séculos (lapso de tempo
irrisório na imemorial história do universo, da Terra e da humanidade) movido
pela promessa e expectativa de progresso ilimitado no acesso da humanidade à
felicidade, à abundância material e à liberdade mediante o domínio e
instrumentalização da natureza e dos seres vivos, a exploração desenfreada dos
seus recursos, a produção e consumo ilimitados e a transformação das condições
sociais e materiais de existência por via política e económica visando
emancipar uma espécie, a humana, da natureza, do sofrimento e dos limites
inerentes à comum condição mortal de todos os viventes. Somos hoje cada vez
mais confrontados, como escreveu Erich Fromm, com o “fracasso” e o “fim” da
“ilusão” dessa nova religião que - avatar laico das expectativas messiânicas
judaico-cristãs do Reino de Deus sobre a Terra (com o qual tanto sonhou entre
nós o Padre António Vieira) - suscitou o entusiasmo e a fé cega de legiões de
crentes e descrentes em todo o mundo capitalista e socialista, a da “Grande Promessa de Progresso Ilimitado”
[1]. A
crise e frustração geral da expectativa de um Paraíso terreno
científico-tecnológico e político-económico, pouco após o seu aparecimento, converteu
este sonho cor-de-rosa no negro pesadelo do sofrimento da guerra, fome e
pobreza, do fosso entre pobres e ricos e entre Norte e Sul, da crise
económico-financeira, da destruição da biodiversidade e da diversidade cultural,
do sofrimento dos animais na indústria alimentar, da poluição do ar, da água e
dos solos, das mutações climáticas, do esgotamento dos combustíveis fósseis, de
desastres ecológicos sem precedentes e do risco de colapso ecológico-social. Tudo
isto agravado pelo crescente mal-estar existencial e espiritual numa
civilização que reprime e encerra o melhor dos seres humanos numa “normose”
colectiva de “cadáveres adiados que procriam” (Fernando Pessoa), mas que cada
vez mais constata que a felicidade que procura não reside no progresso nem na
riqueza materiais, no prazer fugaz, na fama ou no poder, embora permaneça ainda
globalmente incerta e céptica quanto a uma orientação alternativa para encontrar
um sentido para uma vida que parece não o ter para largos sectores da
população, onde dramaticamente se destacam muitos dos mais jovens, mergulhados,
por não terem nos pais exemplos nem educadores, nas distracções hedonistas mais
fúteis, na indiferença, no niilismo e na dependência, seja de psicotrópicos,
álcool, emoções obscuras ou revolta estéril sem horizontes de criação e de
sentido.
Este é o aspecto
sombrio do actual ponto de mutação civilizacional, aquele em que as grandes
ilusões vitais das quais sempre depende a maior parte da humanidade, como diria
Nietzsche, deixaram de o ser, dissolvendo a sua eficácia numa ausência de
referências que não é a da sua transcensão espiritual. Há todavia um inseparável
aspecto luminoso de tudo isto, patente no crescente número de pessoas, grupos e
movimentos que buscam alternativas ao esgotamento do actual paradigma
civilizacional em todos os planos da actividade e da experiência humana -
espiritual, cultural, educativo, terapêutico, ético-moral, social, económico,
ecológico e político – e, sobretudo, na integração de todos eles num novo
paradigma integral, global ou holístico, que reconheça a interconexão de todos
os seres, saberes e práticas no corpo uno e múltiplo do unimultiverso. Das
ruínas do velho mundo, como de um caos genesíaco, brotam rebentos de uma nova
vegetação cheia de seiva e juventude, a de uma renascida inquietação
espiritual, mental e social da humanidade que não se revê nem nas tradições
cristalizadas nem na modernidade hoje não menos fóssil e aspira a uma outra
pós-modernidade, não a do desalento ou da celebração do sistema pseudo-triunfante
(Boaventura de Sousa Santos), mas a da ruptura inventiva de outras formas de
habitar o mundo no respeito integral e na comunidade fraterna com todas as
formas de vida. Nesta nova vegetação radica a promessa de novas flores e outros
frutos, resultantes de imprevistas osmoses, simbioses e metamorfoses entre
tradições e modernidade, bem como, sobretudo, da emergência de algo de novo e
irredutível ao passado e ao presente. Como adverte Jesus, ninguém sabe de onde
vem nem para onde vai o “que nasceu do Espírito” (João, 3, 8).
A mutação que se
processa no mundo reclama naturalmente novos líderes que sejam capazes de ler
os sinais dos tempos, viver em sintonia com o fluxo criador da vida e inspirar
a mudança que urge, sendo exemplos e despertando cada vez mais consciências do
sono espiritual, mental e institucional em que tendem a enclausurar-se. Novos
líderes surgem e surgirão, em todos os domínios, com a característica dos novos
tempos: sem confundir os planos da acção humana – espiritual, cultural, social,
económica, política, etc. - , serem ao mesmo tempo capazes de os integrar numa
visão sistémica e global, mais afim à natureza profunda das coisas do que às
abstracções separativas da razão conceptual humana, tão dominante, em parceria
com a razão calculadora e quantitativa, no ciclo civilizacional que finda, como
expressão também de uma hipertrofiada masculinidade da mente divorciada do seu
natural complemento na feminilidade dos afectos e da sensibilidade.
É aqui que se
prefigura o enorme desafio que se abre ante o Papa Francisco e todos os líderes
espirituais e religiosos do nosso tempo, para não falar de todos os outros.
Vejo ante ele e ante eles alguns aspectos fundamentais desse desafio:
1 – Compreender e
experimentar que o absoluto ou realidade última para que tende cada identidade
e comunidade religiosa é igualmente transcendente a todas, como o seu fundo
comum, não sendo posse exclusiva ou privilegiada de nenhuma.
2 – Compreender
e experimentar que esse mesmo absoluto ou realidade última transcende
inequivocamente todas as formas de representação (imagens, palavras, conceitos,
acções físicas) e portanto todas as doutrinas teológico-filosóficas e práticas
litúrgicas que o visem, não podendo reduzir-se a qualquer dogma ou ritual, sob
risco de se cair na idolatria, trocando-o pelo endeusamento daquilo que a seu
respeito o ser humano imagina, concebe, diz e faz.
3 – Compreender
e experimentar que daí decorre haver muitas vias e experiências que podem
disponibilizar os seres humanos para acederem a esse absoluto ou realidade
última, não apenas as religiosas ou mesmo espirituais, mas também outras,
incluindo as de quem se veja como ateu ou agnóstico.
4 – Compreender
a partir daí a importância e urgência do encontro e do diálogo intercultural e
inter-religioso, mas abrindo este a um encontro e diálogo mais amplo com
agnósticos, ateus e todos aqueles que não se revirem em nenhuma destas
etiquetas. Compreender que todos podem aprender com todos e que em cada via e comunidade
religiosa tanto mais se progredirá no caminho para o absoluto ou realidade
última quanto mais o viajante se abrir à compreensão e ao respeito de outras
vias, caminhos e modos de caminhar, religiosos ou não, para o mesmo destino.
Compreender também que toda a forma de encontro e de diálogo intercultural e
inter-religioso se deve fundar em algo de mais profundo e radical, o silêncio
transcultural e trans-religioso, do qual pode surgir a escuta atenta do outro
- não como estranho ou alheio, mas como
irmão - e a palavra meditada e verdadeira. Compreender que o mais importante da
religião é a espiritualidade, transversal a crentes e não-crentes, e que a
espiritualidade reside no âmago de toda a experiência humana, não só naquelas
rotuladas como “espirituais”.
5 – Compreender e
experimentar que o absoluto ou a realidade última se manifesta igualmente,
embora de diverso e irrepetível modo, em todos os seres e coisas, estando
integralmente presente em cada um e na totalidade dos seres e fenómenos do
unimultiverso. Compreender que a esta luz todos os seres e fenómenos são
sagrados, sendo poderosas e preciosas epifanias da natureza primordial de tudo,
e que todas as hierarquias tradicionalmente concebidas entre os seres são
sempre relativas a pressupostos, perspectivas e critérios humanos e não inerentes
ao mundo visto a partir do absoluto ou realidade última, como acontece nas mais
profundas experiências espirituais, por vezes designadas como “místicas”.
Compreender que todos os seres estão assim interligados no seio do absoluto ou
realidade última, que todos são próximos, íntimos e inseparáveis e que todos
possuem um valor intrínseco e não meramente instrumental. Compreender e
experimentar que tudo quanto existe é a própria expressão gloriosa do absoluto
ou realidade última, que o unimultiverso é sagrado e que o desencantamento do
mundo nunca se deu, sendo apenas o desencantamento da subjectividade moderna
que perdeu a capacidade de percepcionar e sentir a abissal profundidade de
todos e de cada um dos fenómenos.
6 – Compreender
que a partir daí não há nenhuma via para o absoluto ou realidade última que não
exija uma ética global, do respeito, reverência e cuidado integrais por todas
as formas de vida, humanas e não-humanas, bem como pelos ecossistemas e pela
natureza dos quais todas essas vidas dependem e que são igualmente
manifestações plenas e exuberantes desse absoluto ou realidade última.
7 – Compreender
que toda a via para o absoluto ou realidade última é incompatível com a
cumplicidade, alheamento, indiferença ou desconsideração a respeito da discriminação,
opressão e exploração a que sejam sujeitos quaisquer seres, enquanto
manifestações e ícones vivos desse absoluto ou realidade última. Compreender e
praticar a necessidade de que a espiritualidade e a religião se exerçam na
denúncia e no combate não-violento contra todas as formas dessa discriminação,
opressão e exploração: religiosa, cultural, étnica, sexual, especista, social,
económica e política. As identidades e comunidades espirituais e religiosas
devem unir a sabedoria, o amor e a compaixão, a contemplação e a acção, as
quais não se podem desenvolver isoladamente, promovendo novas formas de
intervenção e acção no mundo, fundadas na descoberta da paz interior, da calma
e da clareza mentais e espirituais mediante as práticas contemplativas e
meditativas. Os líderes e as comunidades espirituais e religiosas devem
convergir e unir-se para este fim, criando também plataformas de reflexão e
acção convergente com grupos e movimentos laicos da sociedade civil no sentido
da transformação urgente que o novo ciclo de todos pede.
8 – Compreender
que os líderes espirituais e religiosos devem ser sempre os primeiros exemplos
da mudança que querem ver no mundo, mantendo um espírito aberto, fraterno,
altruísta e desinteressado, sem apego à riqueza material, ao poder, à fama e ao
prestígio. Compreender que o verdadeiro líder é aquele que se apaga no absoluto
ou realidade última e convoca todos a fazerem o mesmo, descobrindo que a
verdadeira liderança é em todos a do espírito divino ou consciência desperta.
9 - No caso específico
do Papa Francisco, e por todas as razões atrás referidas, é de esperar que a
sua opção por este nome, assumindo a inspiração em São Francisco de Assis,
integre abertamente na Igreja Católica a protecção dos animais e do planeta
contra a predação devastadora do velho paradigma antropocêntrico, bem como a
defesa dos pobres e excluídos da actual globalização tecnocientífica,
industrial e capitalista, predominantemente os povos indígenas e do hemisfério
Sul do planeta, exortando à urgência de um novo modelo económico, não dominado
pela perversão anticristã da ganância e do lucro a todo o custo, própria da
nova religião produtivista-consumista servida pelos novos profetas-pregadores
do marketing e da publicidade ao serviço das grandes corporações e da finança
internacional.
É de esperar que
liberte definitivamente a Igreja Católica, fazendo jus ao seu próprio nome (católico significa em grego “segundo o
todo” ou “universal”), do paradigma cultural europeu-ocidental, descentrando-a
para se repensar a partir da totalidade das culturas planetárias e de um
silêncio-diálogo fraterno com todas as tradições e religiões, sem esquecer
ateus e agnósticos, como já antes do Concílio Vaticano II (e muito para além do
que foi consagrado nesse Concílio) entre nós defendeu Agostinho da Silva.
É de esperar,
por fim, que sob a sua liderança a Igreja Católica consagre o sacramento do Amor
em detrimento da discriminação contra as formas homossexuais de o viver, aceite
o acesso das mulheres ao sacerdócio e o matrimónio dos sacerdotes.
É de esperar,
notamos, que com Francisco a Igreja retome a época áurea do bispo Prisciliano,
o primeiro a ser condenado como herege pela instituição eclesiástica e mandado
executar pelo poder secular, que no século IV permitia a pregação das mulheres e
dos laicos nas igrejas, reconhecia o carisma de todos os crentes, exortava ao
vegetarianismo, à comunhão eucarística no seio da natureza e à liberdade na
utilização de evangelhos apócrifos. Prisciliano viveu nas províncias romanas da
Galécia e da Lusitânia, onde suscitou um movimento espiritual alternativo que,
segundo Jaime Cortesão e Agostinho da Silva, contribuiu para o surgimento de
uma consciência colectiva diferenciada e terá sido um dos factores da
constituição do futuro reino de Portugal.
São
estas as minhas maiores aspirações para o pontificado do Papa Francisco e para
esse outro e mais essencial pontificado, o de todos nós, na missão de construirmos
pontes (ponti-fex) e não muros entre
todos os seres, povos, nações, culturas, religiões e irreligiões.
(Texto publicado no livro de Paulo Aido, Francisco: o Papa dos Pobres, Zebra Publicações, 2013).
[1] “A Grande Promessa de Progresso Ilimitado
– a promessa de domínio da Natureza, de abundância material, de maior
felicidade para o maior número de indivíduos, e de liberdade pessoal irrestrita
– alimentou a esperança e a fé de inúmeras gerações desde o início da Revolução
Industrial”; “A trindade da produção ilimitada, liberdade absoluta e felicidade
irrestrita formaram o núcleo de uma nova religião”; “É importante visualizar a
imensidão da Grande Promessa, as maravilhosas conquistas materiais e
intelectuais da Revolução Industrial para podermos compreender o trauma que a
constatação do seu fracasso está a produzir nos dias de hoje. Porque a
Revolução Industrial falhou efectivamente no cumprimento da sua Grande
Promessa” – Erich FROMM, Ter ou Ser? [1976], Lisboa, Editorial Presença, 1999,
pp.13-14.
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