“Sou feito da inteira evolução da Terra; sou um microcosmo do macrocosmo. Nada há no universo que não esteja em mim. O inteiro universo está encapsulado em mim, como uma árvore numa semente. Nada há ali fora no universo que não esteja aqui, em mim. Terra, ar, fogo, água, tempo, espaço, luz, história, evolução e consciência – tudo está em mim. No primeiro instante do Big Bang eu estava lá, por isso trago em mim a inteira evolução da Terra. Também trago em mim os biliões de anos de evolução por vir. Sou o passado e o futuro. A nossa identidade não pode ser definida tão estreitamente como ao afirmar que sou inglês, indiano, cristão, muçulmano, hindu, budista, médico ou advogado. Estas identidades rajásicas são secundárias, de conveniência. A nossa identidade verdadeira ou sáttvica é cósmica, universal. Quando me torno consciente desta identidade primordial, sáttvica, posso ver então o meu verdadeiro lugar no universo e cada uma das minhas acções torna-se uma acção sáttvica, uma acção espiritual”

- Satish Kumar, Spiritual Compass, The Three Qualities of Life, Foxhole, Green Books, 2007, p.77.

“Um ser humano é parte do todo por nós chamado “universo”, uma parte limitada no tempo e no espaço. Nós experimentamo-nos, aos nossos pensamentos e sentimentos, como algo separado do resto – uma espécie de ilusão de óptica da nossa consciência. Esta ilusão é uma espécie de prisão para nós, restringindo-nos aos nossos desejos pessoais e ao afecto por algumas pessoas que nos são mais próximas. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos desta prisão ampliando o nosso círculo de compreensão e de compaixão de modo a que abranja todas as criaturas vivas e o todo da Natureza na sua beleza”

- Einstein

“Na verdade, não estou seguro de que existo. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que encontrei, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei”

- Jorge Luis Borges

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Outro mundo é possível. Até no futebol (artigo para a CAIS de Junho)





Outro mundo é possível. Até no futebol

O futebol é um desporto que suscita as mais violentas emoções, em conformidade com as suas longínquas origens histórico-lendárias. Uma tradição diz que na China, entre 2000 e 1500 a. C., guerreiros inventaram um meio de relaxar após a tensão das batalhas: pontapear o crânio de um inimigo de modo a ultrapassar duas estacas de bambu fincadas no solo. A partir daí teria derivado, já no séc. III a.C., o exercício militar de tsu-chu, “chutar a bola”, que passou a substituir a cabeça humana. Importada pelo Japão no séc. II, o jogo, kemari, deixou de ser uma competição para passar a um cerimonial. Também na América Central, a partir de 900 a.C., se jogou o tlachtli, entre dois grupos de sete jogadores, que procuravam evitar que a bola de borracha tocasse o chão, introduzindo-a num de dois aros de pedra. No início o jogo tinha um sentido ritual e sacrificava-se o capitão da equipa vencida, na maioria das vezes por decapitação [1].

            Fiel às origens, o futebol globalizou-se como o maior ritual catártico da violência subconsciente das emoções colectivas e do crescente mal-estar existencial e civilizacional. Indiscutivelmente fascinante, como jogo e fenómeno estético-coreográfico, e como rito festivo dos desenlaces imprevistos da vida num mundo cada vez mais planificado nos mecanismos do trabalho, da produção e do consumo, questionável é o modo como inconscientemente é vivido. Na verdade, se por um lado sublima a violência instintiva e é um substituto da guerra, por outro reproduz arcaicas e violentas emoções dualistas, que contradizem a regra de ouro ética que é colocar-se no lugar do outro. No futebol de alta competição de clubes e selecções prevalece a lógica tribal ou nacionalista de que uns, por serem da nossa equipa, e terem um determinado emblema, camisola, língua ou hino, são os “bons”, devendo ganhar, e os outros, apenas por serem diferentes, são os “maus”, devendo perder. É ela que nos faz vibrar de alegria com a vitória dos nossos e com a derrota dos outros, ou seja, com isso mesmo que os faz sofrer. E são estas emoções que dificultam a expansão da empatia, da qual dependem vínculos sociais e éticos alargados.

Por outro lado, compreende-se que, numa civilização individualista, burguesa e profana, muito do fascínio do futebol resida também em oferecer um regresso fugaz ao sentimento de pertença e celebração comunitárias e à experiência neoreligiosa de um êxtase por identificação com um símbolo/totem e, sobretudo, com as novas divindades ou heróis que são os jogadores, operadores desses novos milagres que são as grandes defesas, as grandes jogadas e os grandes golos. Essa é a famosa "mística" do futebol, decerto muito mais atractiva do que a reflexão desencantada sobre tudo isto. Como disse Bill Shankly, treinador do Liverpool: “Algumas pessoas pensam que o futebol é tão importante quanto a vida e a morte. Elas estão muito enganadas. Eu asseguro que ele é muito mais sério que isso”.

Essa atracção é contudo instrumentalizada num meganegócio de interesses obscuros, além de servir como hiper-distracção colectiva que, colonizando os media numa gigantesca cortina de fumo, encobre o afundar de uma civilização na opressão sócio-económica e no colapso ecológico, sugando energias humanas e recursos financeiros que podiam ser canalizados para um mundo alternativo.

Não é todavia inevitável que o futebol implique vitórias e derrotas. Outros povos, com outros valores, deram-lhe outra orientação:

“Na Nova-Guiné, os Papuas Gahuku-Kama adoptaram com entusiasmo o futebol, mas adaptaram-no aos seus valores culturais. Excluiu-se haver um ganhador e um perdedor. A partida prolongava-se, era suspensa e retomava-se até que as contas estivessem equilibradas. Isso não impedia em absoluto a excitação de cada golo e a exaltação dos heróis do jogo. Cada partida reforçava a reputação e a satisfação dos dois campos, mas a agressividade era facilmente conjurada” [2].

Estou convicto que a única saída para a globalização da cultura ocidental - que colonizou as mentes com a suposta normalidade de competir com o objectivo de vencer e derrotar o outro, e que hoje domina tudo, desde a educação à economia e à política - é ter a humildade de reaprender o essencial com estas culturas que sobreviveram ao seu imperialismo e que durante séculos espezinhou e humilhou.

Na verdade outro mundo é possível. Até no futebol.



[1] Hilário Franco Júnior, A Dança dos Deuses. Futebol, Sociedade, Cultura, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.15-16.
[2] Serge Latouche, L’Occidentalisation du Monde. Essai sur la signification, la portée et les limites de l’uniformisation planétaire (1989), Paris, La Découverte, 2005, p.76.

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