Outro
mundo é possível. Até no futebol
O futebol é um
desporto que suscita as mais violentas emoções, em conformidade com as suas
longínquas origens histórico-lendárias. Uma tradição diz que na China, entre
2000 e
1500 a.
C., guerreiros inventaram um meio de relaxar após a tensão das batalhas:
pontapear o crânio de um inimigo de modo a ultrapassar duas estacas de bambu
fincadas no solo. A partir daí teria derivado, já no séc. III a.C., o exercício
militar de
tsu-chu, “chutar a bola”,
que passou a substituir a cabeça humana. Importada pelo Japão no séc. II, o
jogo,
kemari, deixou de ser uma
competição para passar a um cerimonial. Também na América Central, a partir de
900 a.C., se jogou o
tlachtli, entre dois grupos de sete
jogadores, que procuravam evitar que a bola de borracha tocasse o chão, introduzindo-a
num de dois aros de pedra. No início o jogo tinha um sentido ritual e sacrificava-se
o capitão da equipa vencida, na maioria das vezes por decapitação
.
Fiel
às origens, o futebol globalizou-se como o maior ritual
catártico da violência subconsciente das emoções colectivas e do crescente
mal-estar existencial e civilizacional. Indiscutivelmente fascinante, como jogo
e fenómeno estético-coreográfico, e como rito festivo dos desenlaces
imprevistos da vida num mundo cada vez mais planificado nos mecanismos do
trabalho, da produção e do consumo, questionável é o modo como
inconscientemente é vivido. Na verdade, se por um lado sublima a violência
instintiva e é um substituto da guerra, por outro reproduz arcaicas e violentas
emoções dualistas, que contradizem a regra de ouro ética que é colocar-se no
lugar do outro. No futebol de alta competição de clubes e selecções prevalece a
lógica tribal ou nacionalista de que uns, por serem da nossa equipa, e terem um
determinado emblema, camisola, língua ou hino, são os “bons”, devendo ganhar, e
os outros, apenas por serem diferentes, são os “maus”, devendo perder. É ela
que nos faz vibrar de alegria com a vitória dos nossos e com a derrota dos
outros, ou seja, com isso mesmo que os faz sofrer. E são estas emoções que
dificultam a expansão da empatia, da qual dependem vínculos sociais e éticos
alargados.
Por outro lado, compreende-se que, numa civilização
individualista, burguesa e profana, muito do fascínio do futebol resida também
em oferecer um regresso fugaz ao sentimento de pertença e celebração comunitárias
e à experiência neoreligiosa de um êxtase por identificação com um
símbolo/totem e, sobretudo, com as novas divindades ou heróis que são os
jogadores, operadores desses novos milagres que são as grandes defesas, as
grandes jogadas e os grandes golos. Essa é a famosa "mística" do futebol, decerto muito mais atractiva do que a
reflexão desencantada sobre tudo isto. Como disse Bill Shankly, treinador do
Liverpool: “Algumas pessoas pensam que o futebol é tão importante quanto a vida
e a morte. Elas estão muito enganadas. Eu asseguro que ele é muito mais sério
que isso”.
Essa atracção é contudo instrumentalizada num meganegócio
de interesses obscuros, além de servir como hiper-distracção colectiva que, colonizando
os media numa gigantesca cortina de fumo, encobre o afundar de uma civilização na
opressão sócio-económica e no colapso ecológico, sugando energias humanas e
recursos financeiros que podiam ser canalizados para um mundo alternativo.
Não é todavia inevitável que o futebol implique
vitórias e derrotas. Outros povos, com outros valores, deram-lhe outra
orientação:
“Na Nova-Guiné,
os Papuas Gahuku-Kama adoptaram com entusiasmo o futebol, mas adaptaram-no aos
seus valores culturais. Excluiu-se haver um ganhador e um perdedor. A partida
prolongava-se, era suspensa e retomava-se até que as contas estivessem
equilibradas. Isso não impedia em absoluto a excitação de cada golo e a
exaltação dos heróis do jogo. Cada partida reforçava a reputação e a satisfação
dos dois campos, mas a agressividade era facilmente conjurada”
.
Estou convicto
que a única saída para a globalização da cultura ocidental - que colonizou as
mentes com a suposta normalidade de competir com o objectivo de vencer e
derrotar o outro, e que hoje domina tudo, desde a educação à economia e à
política - é ter a humildade de reaprender o essencial com estas culturas que
sobreviveram ao seu imperialismo e que durante séculos espezinhou e humilhou.
Na verdade outro
mundo é possível. Até no futebol.
Serge Latouche, L’Occidentalisation du Monde. Essai sur la signification, la portée et les limites de
l’uniformisation planétaire (1989), Paris, La Découverte, 2005, p.76.
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