terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Mãe Terra

Todos os nossos problemas e o risco de um colapso ecológico-social sem precedentes radicam na nossa desconexão com a Terra e com a comunidade dos seres vivos, com a biosfera e com o unimultiverso. Uma desconexão irreal, pois o ser humano não existe em si e por si, desintegrado dos fluxos de matéria, energia e consciência que constituem tudo quanto existe. Somos feitos dos mesmos elementos que constituem todos os seres e coisas, mas a ficção da separação, com o medo, a insegurança, a avidez e a hostilidade daí decorrentes, determinou uma evolução social e individual em que, sobretudo no actual paradigma de civilização globalizado, nos vemos como os donos do planeta com direito a explorar os seus recursos naturais e a comunidade dos seres vivos a nosso bel-prazer, para satisfazer não só as nossas necessidades, mas sobretudo os nossos desejos e caprichos mais fúteis. Da crença na existência independente da humanidade passou-se para a atribuição de valor intrínseco apenas ao ser humano, considerando-se a natureza e os demais seres vivos como dotados de mero valor instrumental, dependente da sua utilidade para a realização das finalidades humanas. Isso traduz-se hoje na nova religião laica do crescimento económico a todo o custo, que ignora a sua impossibilidade num planeta com recursos naturais finitos e tem dominado as políticas governamentais de esquerda, centro e direita, conduzindo-nos à poluição, às alterações climáticas e à destruição massiva e acelerada da biodiversidade e dos ecossistemas que relatórios científicos isentos mostram compor um quadro de insustentabilidade e de risco de colapso iminentes, para além do sofrimento causado a incontáveis seres humanos e não-humanos.

Perante isto, mais do que reformas pontuais e isoladas, é urgente ir à raiz do problema e mudar o estado de consciência dominante. Importa promover uma consciência vivida – pelos métodos contemplativos e meditativos e pelo alargamento amoroso e compassivo da noção de “próximo” a tudo o que existe, vive e sente – da inseparabilidade entre a vida humana e as demais formas de vida no seio da nossa Mãe comum, a Terra, da biosfera e do unimultiverso. Só esta profunda mudança espiritual – aliada ao reconhecimento da insustentabilidade do paradigma dominante em termos sociais, económicos e ambientais – pode conduzir a uma mudança estrutural das nossas vidas e das nossas sociedades, bem como a uma reconversão profunda da cultura, da economia e da política, colocando-as ao serviço de uma noção ampla de Bem Comum, já não o de uma única espécie, a humana, mas o de todos os seres vivos, da Terra e da biosfera como um todo inseparável. Daí decorrerá também a mudança jurídica que se impõe, que deve consagrar o valor intrínseco não só do ser humano, mas de todas as formas de vida e da própria Terra, que não podem continuar a ser consideradas mera propriedade que se pode explorar e rentabilizar ilimitadamente. Na verdade, a Mãe Terra não pertence ao ser humano, sendo antes a matriz comum que origina e nutre igualmente todas as vidas que nela surgem de modo interdependente, intimamente ligadas a si e entre elas. Como fundamento dos seus próprios direitos, o ser humano tem o dever de respeitar, proteger e promover a integridade da Terra e de todos os viventes.

Só uma consciência e uma cultura do entre-ser permite reconhecer, respeitar e preservar este cordão umbilical que jamais se pode cortar e que podemos experimentar na própria respiração, pela qual continuamente inspiramos e expiramos e somos inspirados e expirados pelo alento vital que impregna e circula por todos os seres e coisas. O ar e todas as energias, densas e subtis, são como o sangue e o espírito da Terra e da biosfera, pelos quais somos inseparáveis do infinito corpo do unimultiverso e da Vida em todas as suas manifestações. Saibamos respirar e ser respirados e tudo será diferente.

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