terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre a Tortura dos Humanos e dos Animais (a propósito do livro de José Sócrates, do prefácio de Lula da Silva e do posfácio de Eduardo Lourenço)


O Público do passado Domingo (6.04.2014) pré-publicou o posfácio do professor e ensaísta Eduardo Lourenço à 2ª edição do livro do ex-primeiro-ministro José Sócrates, A Confiança no Mundo, onde este trata da persistência da prática institucional da tortura no mundo actual, nomeadamente em “nações-santuários da Democracia ocidental” como a França e os Estados Unidos. O ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, no seu prefácio ao livro, chama-lhe a “velha chaga que acompanha a história da humanidade há séculos e séculos” e continua a supurar “neste nosso mundo herdeiro das Luzes e suas libertadoras utopias”, acrescenta Eduardo Lourenço. José Sócrates considera a existência actual da tortura como “escândalo e contradição ética intolerável na perspectiva de uma ordem propriamente democrática” e isso confere ao seu livro, segundo Eduardo Lourenço, “uma função problematizadora da própria mitologia democrática sob a qual, em princípio, assenta a ordem ideal da chamada Civilização Ocidental e não só”.

Lourenço considera que a tortura, não sendo a única expressão do “Inumano”, é todavia “aquele acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro, aditando ser o único comportamento “que é acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana”. Recorda a esse respeito a conversão da tortura em “espectáculo” e “festa” nos países da Inquisição e no Portugal do tempo dos Távoras. Recorda também o que se passou ao longo do século XX nos campos de concentração nazis, estalinistas e de Pol Pot. E indigna-se perante a tortura no século XXI, em França e nos EUA, que ousa cruzar a linha de separação entre a “cultura democrática mítica” e a “mais clássica barbárie”, o que vê como “da ordem da abominação e da denegação prática e ideal da democracia”. A “História”, para o pensador, “é o eterno e nunca gasto combate para separar em nós e no mundo o que nos humaniza do que nos remete para a condição impensável mas nunca extinta do inumano”.

José Sócrates, Lula da Silva e Eduardo Lourenço têm obviamente razão e a maioria de nós reconhece-se nas suas palavras e sentimentos de indignação perante um acto tão bárbaro e inumano como a tortura. Mas infelizmente, eles e muitos de nós, vítimas do preconceito antropocêntrico e especista que domina a nossa cultura, esquecemos que a tortura de que são vítimas os seres humanos tem sido e é cada vez mais nos nossos dias uma manifestação apenas da inimaginavelmente mais ampla e cruel tortura que infligimos aos animais. Com efeito, pense-se em como são criados, (mal)tratados e abatidos os biliões de animais que anualmente usamos para nossa alimentação, vestuário, divertimento, experiências ditas científicas e trabalho. Biliões de vidas que, como as nossas, se manifestam em corpos e mentes sensíveis e vulneráveis à dor, ao medo e à angústia. Biliões de vidas que, como as nossas, aspiram à liberdade, à segurança e ao bem-estar e são arrancadas aos seus habitats naturais ou produzidas numa demência industrial para serem instrumentalizadas, violentadas, torturadas e destruídas sem a menor consideração pela sua alteridade e pelo seu estatuto de seres conscientes e sencientes. Ou seja, precisamente o mesmo, mas em muito maior escala, que atrás se definiu como a quinta-essência da tortura, expressão do “Inumano” e “acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro”, que muitas vezes, como nos circos, touradas e demais espectáculos, ainda é “acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana”.

A Antropologia e a História mostram que a escravatura e massacre dos animais serviu de modelo inspirador aos dos humanos. Como documenta o perturbador livro do historiador Charles Patterson, Eternal Treblinka, foi a invenção das cadeias de abate industrial nos matadouros de Chicago que inspirou as cadeias de montagem de viaturas de Henri Ford e os corredores de morte em massa dos campos de concentração nazis. Como diz uma personagem de Isaac Bashevis Singer, em The Letter Writer, perante um rato morto: “Todos estes eruditos, todos estes filósofos, os dirigentes do planeta, que sabem eles de alguém como tu? Persuadiram-se de que o humano, espécie pecadora entre todas, domina a criação. Todas as outras criaturas não teriam sido criadas senão para lhe fornecer comida e peles, para ser martirizadas, exterminadas. Para estas criaturas, todos os humanos são nazis; para os animais, é um eterno Treblinka”. Como escreve o Prémio Nobel de Literatura J. M. Coetzee, em The Lives of Animals: “Permitam-me dizê-lo abertamente: nós estamos rodeados por um empreendimento de degradação, crueldade e morte que ultrapassa tudo de que foi capaz o III Reich, na medida em que o nosso empreendimento é sem fim, se autoregenera e faz vir sem cessar coelhos, ratos, galinhas e gado ao mundo com o único objectivo de os matar”.

Assim é, caros José Sócrates, Lula da Silva e Eduardo Lourenço. As nossas sociedades e as nossas democracias, com a sua mitologia da liberdade (perdida que foi a da igualdade e da fraternidade), enraízam-se hipocritamente no inferno de uma tortura, uma barbárie e um holocausto sem precedentes. As nossas sociedades e as nossas democracias, mesmo quando são um pouco menos injustas para com os humanos, continuam a ser implacáveis tiranias e ditaduras para os animais. E se é escandalosa a tortura, que bem denunciam, mais escandaloso é o silêncio a que vós, enquanto líderes de opinião, e convosco tanta gente supostamente culta e bem pensante, vota o sofrimento dos animais. Dirão talvez: “não são senão animais”. Respondo-vos com as palavras de Theodor Adorno: “Auschwitz começa quando alguém olha para um matadouro e pensa: não são senão animais”.

Os ditos quase 70 anos de paz na Europa são na verdade 70 anos de guerra e violência aberta de uma espécie apenas, a humana, contra todas as demais espécies de seres vivos, extensiva aos recursos naturais do planeta. É por isso que chegou a Hora de pôr a nu esta violência camuflada. Chegou a Hora de revelar a profunda inumanidade que se encobre nas nossas práticas e discursos humanistas. Chegou a Hora do apocalipse, que etimologicamente não quer dizer catástrofe, mas sim revelação: revelação da barbárie escondida, que é a única via para a sua superação. Chegou a Hora dos advogados e defensores dos animais, de todos os animais, humanos e não-humanos. A Hora de uma Outra Democracia: a que cuide do bem do planeta e de todos os seres vivos.





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