sexta-feira, 18 de abril de 2014

Uma experiência, uma epifania da Vida

Ontem não pude apresentar o meu livro “É a Hora!” em Coimbra, pois uma senhora foi tragicamente colhida por um comboio em Santarém e, após uma longa paragem, tive de desistir da viagem. Saí na estação de Setil e ali fiquei à espera de um comboio regional que me trouxesse de volta para Lisboa, no meio do nada, numa estação fantasma junto a uma aldeia não menos fantasma cuja população não chega a 30 pessoas. Ia a ler “The Sacred Universe”, de Thomas Berry, e de súbito a realidade mostrou-me o que o livro dizia, mas com muito mais brilho e eloquência. O isolamento no meio de uma estação deserta, a suspensão de todos os planos, projectos e expectativas, o não saber quanto tempo iria ali ficar, mas sobretudo o incêndio dos campos com o canto estridente das cigarras, o sol primaveril a aquecer o ar e a fazer cintilar as cores, o som do vento nas árvores, moitas e ervas altas, o odor da natureza selvagem, converteu-se numa autêntica epifania. Por experiência directa senti o que Thomas Berry afirma, que não é nos textos sagrados nem nos seus comentários humanos, mas sim na natureza que o divino constantemente se manifesta e connosco comunica, numa linguagem infinitamente mais perfeita que todas as línguas humanas. Aquele sol e aquele canto das cigarras, toda aquela profusão de coisas bem sensíveis, inseparáveis da consciência alerta que em mim despertaram, eram a experiência directa do que uns chamam “Deus” e outros muitos outros nomes. Chamo-lhe Vida, uma Vida opulenta da qual somos inseparáveis, mas que tristemente quase nunca percepcionamos por andarmos enclausurados nos nossos pensamentos, planos e preocupações, nos nossos livros e telemóveis, nas nossas casas, cidades e veículos. Durou pouco mas soube a muito, soube a tudo. Passado algum tempo chegou o comboio regional vindo de Tomar e nele regressei à (a)normalidade desta vida menor em que nos exilamos e refugiamos da Grande Vida que a tudo abraça.

Compreendi uma vez mais, por experiência directa, a razão profunda pela qual a humanidade está a destruir os recursos naturais do planeta e os demais seres vivos, destruindo-se a si mesma. Antes mesmo dos motivos económicos e da ganância de lucro, a raiz mais funda deste drama está no facto de a maior parte dos humanos ter perdido esta evidência da sacralidade do mundo, ter perdido a capacidade de maravilhamento e gratidão perante o prodígio da natureza e imaginar-se desconectada desta Vida que é afinal a nossa única e imensa riqueza. Agora sei que na verdade existem anjos: aquelas cigarras, com o seu sublime canto, são os Anjos do Real. E os nossos campos abandonados são o Paraíso, o Paraíso que na verdade por todo o lado podemos reencontrar se tivermos os sentidos bem despertos e a consciência despida de planos, preocupações e (pre)conceitos. A mudança de paradigma tem de passar pelo despertar espiritual da humanidade, para lá de religiões, crenças e ismos.

2 comentários:

  1. Ora nem mais, para os seres que se deixam adormecer e nos quais me incluo, urge cada vez mais o retorno à sacralidade.A imersão na Natureza é o meio por excelência que nos aproxima mais da Epifania, a revelação do imanente e do transcendente no aqui e no agora. Parabéns Paulo por essa experiência única e tão necessária para todos nós. Luís

    ResponderEliminar