Vivemos uma profunda crise do paradigma que dominou a humanidade
europeia-ocidental e se mundializou: nele o homem vê-se como centro e dono do
mundo, reduzindo natureza e seres vivos a objectos desprovidos de valor
intrínseco, meros meios destinados a servir fins e interesses humanos [1]. Se a
tecnociência contemporânea confiou no progresso geral da humanidade mediante a
exploração ilimitada dos recursos naturais e dos seres vivos, frustra-se hoje
essa expectativa de um Paraíso terreno científico-tecnológico-económico: o
sonho dos projectos neoliberais e socialistas converteu-se no pesadelo da
guerra, fome e pobreza, da crise económico-financeira, da destruição da
biodiversidade, do sofrimento humano e animal e da iminência de colapso
ecológico. Os relatórios científicos mostram o tremendo impacte que o actual
modelo de crescimento económico tem sobre a biosfera planetária, acelerando a
sexta extinção em massa do Holoceno, com uma redução drástica da
biodiversidade, sobretudo nos últimos 50 anos, a um ritmo que chega a 140 000
espécies de plantas e animais por ano, devido a causas humanas: destruição de
florestas e outros habitats, caça e pesca, introdução de espécies não-nativas,
poluição e mudanças de clima [2].
Manifestação particularmente violenta do antropocentrismo é o especismo,
preconceito pelo qual o homem discrimina os membros de outras espécies animais
por serem diferentes, mediante um critério baseado no tipo de inteligência que
possuem que ignora a sua comum capacidade de sentirem dor e prazer físicos e
psicológicos (a senciência, ou seja, a sensibilidade e o sentimento conscientes
de si, distinto da sensitividade das plantas) ou o serem sujeitos-de-uma-vida,
consoante as perspectivas de Peter Singer e Tom Regan [3]. A exploração
ilimitada de recursos naturais finitos e dos animais não-humanos para fins
alimentares, (pseudo-)científicos, de trabalho, vestuário e divertimento, tem causado
um grande desequilíbrio ecológico e um enorme sofrimento. O especismo é afim a
todas as formas de discriminação e opressão do homem pelo homem, como o
sexismo, o racismo e o esclavagismo, embora sem lograr ainda o reconhecimento e
combate de que estas têm sido alvo.
A desconsideração ética do mundo natural e da vida animal não só obsta à
evolução moral da humanidade como também a lesa, lesando o planeta, como é
particularmente evidente nos efeitos do consumo de carne industrial e de
lacticínios. Além do sofrimento dos animais, criados em autênticos campos de
concentração [4], além da nocividade da sua
carne, saturada de antibióticos e hormonas de crescimento [5], a
pecuária intensiva é um mau negócio com um imenso impacte ecológico: entre
outros índices, destaque-se que toda a proteína vegetal hoje produzida no mundo
para alimentar animais para consumo humano poderia nutrir directamente 2 000
milhões de pessoas, quase um terço da população mundial, enquanto 1 000 milhões
padecem fome [6]. Isto leva a ONU a
considerar urgente uma dieta sem carne nem lacticínios para alimentar de forma
sustentável uma população que deve atingir os 9.1 biliões em 2050 [7].
Compreende-se assim a urgência de um novo paradigma mental, ético e
civilizacional que veja que as agressões aos animais e à natureza são agressões
da humanidade a si mesma, que não separe as causas humanitária, animal e
ecológica e que reconheça valor intrínseco e não apenas instrumental aos seres
sencientes e ao mundo natural, consagrando juridicamente o direito dos
primeiros à vida e ao bem-estar e o do segundo à preservação e integridade (no
que respeita aos animais, note-se que Portugal possui um dos Códigos Civis mais
atrasados, considerando-os meras coisas móveis (!), o que urge alterar) [8]. Sem
este novo paradigma, de uma nova humanidade, não antropocêntrica, em que o
homem seja responsável pelo bem de tudo e de todos [9], não
parece viável haver futuro.
[1] Kant considera o homem o
“senhor da natureza”, que tem nele o seu “fim último” – Critique de la faculté de juger, 83, Paris, Vrin, 1982. O mesmo
autor considera que os animais “não têm consciência de si mesmos e não são, por
conseguinte, senão meios em vista de um fim. Esse fim é o homem”, que não tem
“nenhum dever imediato para com eles” – Leçons
d’éthique, Paris, LGF, 1997, p.391.
[2] A equipa internacional
liderada pelo biólogo Miguel Araújo, da Universidade de Évora, publicou
recentemente um importante artigo na revista Nature sobre as consequências na “árvore da vida” das mutações
climáticas antropogénicas: http://www.nature.com/nature/journal/v470/n7335/full/nature09705.html
[3] Cf. Peter Singer, Libertação Animal [1975], Porto, Via Óptima, 2008; Tom Regan, The Case for Animal Rights [1983],
Berkeley, University of California Press, 2004, 3ª edição. Peter Singer
segue a perspectiva utilitarista herdada de Jeremy Bentham e baseia-se na
igualdade de interesses dos animais humanos e não-humanos em experimentarem o
prazer e evitarem a dor, enquanto Tom Regan estende a muitos dos animais
não-humanos a perspectiva deontológica de Kant, considerando-os indivíduos com
identidade, iniciativas e objectivos e assim com direitos intrínsecos à vida, à
liberdade e integridade. Cf. Os animais
têm direitos? Perspectivas e argumentos, introd., org. e trad. de Pedro
Galvão, Lisboa, Dinalivro, 2011.
[4] Cf. Peter Singer, Libertação Animal; Jonathan S. Foer, Comer Animais [2009], Lisboa, Bertrand,
2010.
[5] Segundo a Organização
Mundial de Saúde, mais de 75% das doenças mais mortais nos países
industrializados advêm do consumo de carne.
[6] A
produção de 1 kg
de carne de vaca liberta mais gases com efeito de estufa do que conduzir um
carro e deixar todas as luzes de casa ligadas durante 3 dias, consome 13-15 kg de cereais/leguminosas
e 15 000 litros
de água potável, cuja escassez já causa 1.6 milhões de mortes por ano e novos ciclos
bélicos (http://www.ambienteonline.pt/noticias/detalhes.php?id=7788); a
pecuária intensiva é responsável por 18% da emissão de gases com efeito de
estufa a nível mundial, como o metano, emitido pelo gado bovino, que contribui
para o aquecimento global 23 vezes mais do que o dióxido de carbono; 70% do
solo agrícola mundial destina-se a alimentar gado e 70% da desflorestação da
selva amazónica deve-se à criação de pastagens e cultivo de soja para o
alimentar - cf. um relatório de 2006 da FAO, Food and Agriculture Organization,
da ONU, Livestock’s Long Shadow:
environmental issues and options:
http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM
[7]
http://www.guardian.co.uk/environment/2010/jun/02/un-report-meat-free-diet
[8] Para uma introdução às
diferentes perspectivas e questões filosóficas, éticas e jurídicas relacionadas
com a natureza e os animais, cf. Fernando Araújo, A Hora dos Direitos dos Animais, Coimbra, Almedina, 2003; Maria
José Varandas, Ambiente. Uma Questão de
Ética, Lisboa, Esfera do Caos, 2009; Stéphane Ferret, Deepwater Horizon. Éthique de
la Nature et Philosophie de la Crise Écologique, Paris, Seuil, 2011.
[9] Cf. Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung, Frankfurt am
Mein, Insel Verlag, 1979; Paulo Borges, "A questão dos direitos dos animais. Para uma genealogia
e fundamentação filosóficas", in Hélder Martins Leitão, A Pessoa, a Coisa, o Facto no Código Civil,
Porto, Almeida & Leitão, Lda, 2010, pp.229-251; “Quem é o meu próximo? Senciência, empatia e
ilimitação”, Philosophica, nº40
(Lisboa, 2012), pp.25-40; Quem é o meu
próximo? Ensaios e textos de intervenção por uma nova civilização, Lisboa,
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (no prelo).
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