terça-feira, 10 de maio de 2016

O túnel do Marão e a barbárie do "progresso"


Ainda sobre o túnel do Marão, um grande texto de Jorge Leandro Rosa. É espantoso como vivemos enfeitiçados pela barbárie do "progresso".

"O PAÍS TRESPASSADO

Um jornalista deu-nos involuntariamente o retrato de um país terraplanado no corpo e no espírito: «Amanhã cai o Marão, inaugura-se o túnel do dito e com ele Trás-os-Montes fica mais plano, as gentes de Vila Real, Bragança e do Alto Douro ficam menos atrás dos montes e mais perto do litoral» (JN, 6 de Maio).

O consenso em torno dos túneis e viadutos é a congregação das vidas desesperadas que já abandonaram a viagem vertical. As existências querem-se planas e planificadas. Os montes, que abandonámos há muito, tornam-se meros paredões. A errância, fonte da experiência do ser que caminha, reduziu-se à auto-mobilidade. Este consenso assinala a vida restante, a definição do que é possível ser-se em Portugal: vidas litorais que já não entram pelo mar adentro.

Os túneis e os viadutos são um retrato da esperança de vida por estas paragens: tudo está pronto para a milagrosa circulação das mercadorias; tudo existe em função da circulação do mundo, sob a forma de coisas transaccionáveis, nestas regiões; tudo assenta nas máquinas que tudo movem, embora elas não nos possam dizer o porquê desses movimentos. Essa mobilização de tudo já pertence ao passado e dela vemos as últimas manifestações, agora que a energia deixou de poder ser tomada como infinita.

Escavar túneis, lançar viadutos, significa também que nos tornámos cegos às formas rebeldes, inumanas no fervor, que nos recordam o incompreensível das autonomias como parte do que merece ser vivido. «O fervor, propriedade variável segundo as épocas, abandonou os olhos modernos», escreveu Erri De Luca. Uma montanha que se trespassa é a inscrição de uma das formas da ignorância: a ignorância da terra anímica.

Aquilino, um dos que ainda compreenderam o Marão: «Esta serra mostra realmente uma fisionomia revel, zangada com as estrelas, escapa à bondade divina, diferente das outras» (in O Homem da Nave). Recusemo-nos, nós também, a certas bondares humanas"

Jorge Leandro Rosa

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