terça-feira, 17 de março de 2015

Um exercício prático: contemplar os pensamentos sem nos identificarmos nem envolvermos com eles

"Atenção plena aos fenómenos mentais

Apresentamos agora um método que, a par da atenção à respiração, constitui um dos mais universais e importantes para acalmarmos e focarmos a mente, com a vantagem de constituir um passo fundamental para usufruirmos do potencial autocognitivo da experiência meditativa, unindo a calma, serenidade ou paz mental (śamatha) à visão penetrante (vipaśyāna), a compreensão da natureza profunda das coisas e da mente que as percepciona.
Começamos sempre pela presença aberta, sem foco e sem objecto, seguida pelo alinhamento e vivência dos sete pontos da postura externa e interna. Podemos depois dirigir a atenção, por breves momentos, para os dois suportes anteriores – o corpo e as sensações físicas e a respiração (usando o método respiratório que preferirmos, com ou sem contagem) – ou então focar logo a atenção naquele que for neste momento o mais eficaz para nós. Quando sentirmos que começa a haver alguma estabilidade mental, passamos então a uma dimensão ainda mais funda e subtil de nós mesmos, que na verdade é composta por várias dimensões de cada vez maior profundidade e subtileza em termos de consciência: referimo-nos àquilo que aqui designamos em geral como “mente”.

O que fazemos é voltar a mente para si mesma, de modo a que se observe serenamente e a que aquilo que tantas vezes nos distrai, quando tentamos focar a atenção no corpo e na respiração – todo o turbilhão de pensamentos, palavras, imagens e emoções, ou seja, todos os fenómenos internos ou mentais – , deixe de ser um adversário para passar a ser um aliado. Os fenómenos internos ou estados mentais passam agora a ser o objecto ou o suporte onde focamos a atenção, a fim de que a mente seja como um espectador sereno que contempla num ecrã toda a sucessão de pensamentos, palavras, imagens e emoções sem se identificar nem envolver com eles. Tentamos não nos identificar com eles abandonando o duplo hábito de considerarmos que somos os pensamentos que temos e que eles são “nossos”: na verdade a mente é muito mais vasta do que os fenómenos e estados mentais que nela se manifestam, que na maioria são involuntários; não temos (pelo menos neste momento) qualquer poder absoluto sobre eles, no sentido de os poder ter ou não quando desejamos e de os modificar a nosso bel-prazer. A não identificação com os fenómenos mentais torna mais fácil não nos envolvermos com eles, seja a nível conceptual – analisando, interpretando, julgando e colando-lhes rótulos, como “bom”, “mau”, “positivo”, “negativo, “agradável”, “desagradável”, etc. - , seja a nível emocional (os dois níveis são obviamente inseparáveis), reagindo-lhes com apego, aversão ou indiferença.

Ao fazer isto constatamos haver algo em nós - uma dimensão mais profunda da mente e de nós mesmos, uma dimensão mais profunda da consciência - que tem a capacidade de contemplar apenas tudo o que surge na experiência interna, acolhendo-o tal qual se manifesta, sem analisar, interpretar, comentar, comparar, julgar ou conceptualizar e sem lhe reagir em função disso. Há nisto a que chamamos “nós” uma dimensão mais profunda e original da consciência que contempla todos os estados mentais e emocionais sem lhes impor os moldes e as formatações conceptuais e valorativas resultantes da nossa história pessoal em interacção com a educação, a cultura e o ambiente social e que constituem filtros ou lentes coloridas que desfocam ou tingem com os seus pré-juízos e pressupostos aquilo que surge tal qual surge. O “espectador” não é senão uma metáfora dessa dimensão mais funda da consciência que contempla com muita atenção tudo o que nela se manifesta, mas sem comentários, num profundo silêncio exterior e sobretudo interior, e sem reagir a isso, numa profunda paz, simplicidade e liberdade.

Numa outra imagem, é como se esta dimensão mais funda da mente ou da consciência fosse um céu – vasto, ilimitado e naturalmente luminoso, porque naturalmente consciente – que contempla serenamente todos os pensamentos, emoções, palavras e imagens como nuvens – brancas, cinzentas ou negras, pacíficas ou tempestuosas, lentas ou velozes, mas sempre apenas nuvens - que nele se formam, transformam e dissipam, sem deixar rasto e sem o perturbar minimamente, permanecendo sempre inalterável. Ou, noutra imagem ainda, como se essa dimensão correspondesse à visão de um mergulhador que contempla do fundo do oceano a superfície agitada do mesmo. Por maiores e mais violentas que sejam as vagas e as tempestades à superfície, o mergulhador contempla tudo isso do fundo sereno do oceano. Na verdade ele é o fundo sempre sereno do oceano e permanece imperturbável. E noutra imagem essa dimensão da consciência pode ser como uma criança que sorri em paz, feliz e divertida, contemplando o espectáculo dos pensamentos e de tudo o mais como meras bolas de sabão que pairam, brilham e flutuam uns momentos no espaço para logo explodirem e se desvanecerem sem deixar qualquer rasto, como se nunca houvessem existido"

- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral (guia prático de meditação)

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