sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Somos normais?


"Na verdade, se os relatórios científicos nos advertem que a Terra enfrenta a sexta extinção massiva da biodiversidade desde o Holoceno, a primeira por causas humanas, os relatórios da alma dizem-nos que perdemos ou esquecemos o nosso centro e a nossa meta real, pois a paz, a felicidade e a plenitude é o que mais procuramos e parece ser disso que cada vez mais nos afastamos. O estado de pré-colapso social e ecológico em que se encontra o planeta não é senão o reflexo e a projecção externa do caos e do colapso em que tantas vezes se encontram as nossas mentes, nos afazeres de mil actividades divorciadas dos ritmos naturais do corpo e da vida e perdidas num turbilhão de pensamentos, emoções e preocupações que irresistivelmente nos arrastam como folhas secas numa tempestade interior, privando-nos de toda a calma, serenidade e lucidez necessárias ao pleno florescer e frutificar de uma vida humana sã e normal. Talvez seja o momento de termos a coragem de assumir que aquilo que passa por ser normal no nosso estado mental e comportamental dominante não é senão uma “normose”, a patologia de uma normalidade que se apresenta como tal, mas que é na verdade lesiva do nosso ser e das nossas mais profundas aspirações, tornando-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes e doentes. O conceito de “patologia da normalidade” foi também antecipado por Erich Fromm, ao considerar que, contra a perspectiva limitada de muitos psiquiatras e psicólogos, o problema da saúde mental não se limita aos indivíduos “desajustados”, estendendo-se antes ao “possível desajuste da própria cultura”, configurando uma “patologia social”, neste caso “a patologia da sociedade ocidental contemporânea”. Com efeito, do ponto de vista das possibilidades reveladas pelo que o professor Roger Walsh chama as “disciplinas da consciência” (como a meditação e a contemplação), “o nosso estado comum de consciência de vigília está severamente abaixo do óptimo”. A cultura instituída, ao normalizar estados mentais e emocionais dissonantes e patológicos, só por serem social e quantitativamente dominantes, passou a percepcionar como patológicos muitos estados de consciência mais profunda, aquilo a que Stanislav Grof chama “emergências espirituais”. Tendemos por exemplo a achar normais e salutares a competição, a ambição e a ganância, no plano pessoal, social e institucional, enquanto somos capazes de considerar sinais de fraqueza ou de falta de inteligência o amor e a compaixão, além de considerarmos psicóticas pessoas que não se sintam separadas dos outros seres e do mundo e que experimentem estados holotrópicos de consciência (com um dinamismo de aspiração à totalidade), como aqueles que surgem espontaneamente ou resultam naturalmente da prática meditativa e contemplativa regular. Há nisto também um profundo etnocentrismo, em que a única cosmovisão do mundo tida por válida é a do racionalismo materialista da civilização ocidental tecnocientífica e industrial. Se, por exemplo, uma experiência de abertura não-dual e holística da consciência, em que alguém se sinta inseparável do universo e do divino, ocorrer numa cultura oriental ou indígena, haverá um enorme respeito pelo seu sujeito e um imenso interesse social em aprender com ele e usufruir da partilha da sua vivência, considerada preciosa, ao passo que se a mesma experiência ocorrer numa sociedade ocidental ele tenderá a ocultá-la, pois se a partilhar expõe-se ao ridículo e ao gozo público de ser considerado um “místico” alucinado ou a ser hospitalizado para receber tratamento psicofarmacológico que suprima os sintomas (perturbadores não tanto para ele, mas para a estreiteza mental dominante) e o devolva à “normalidade” segundo o critério médico-psiquiátrico ainda dominante".

- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, Lisboa, Mahatma, 2015, pp.31-33.

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