quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Meditar na respiração: respiramos ou somos respirados?


"Findo o pequeno período de pós-meditação, entramos de novo num breve momento de meditação sem objecto, mantendo apenas a coluna bem direita. A partir daí, dirigimos a atenção para o corpo, que alinhamos de novo na postura em sete pontos, vivenciando a sua dimensão física e mental, interna e externa. Procuramos fazer sempre todos estes exercícios como se fosse a primeira vez, sem os converter num hábito, rotina ou processo automático. Na verdade é sempre a primeira e única vez que os fazemos, tal como tudo na nossa vida. Mantemos um espírito fresco, aberto e muito sensível à constante novidade de cada experiência, que é sempre irrepetível. Por muito que já tenhamos praticado ou lido sobre meditação, abdicamos de pensar que já sabemos alguma coisa e vivenciamos cada instante da experiência a partir do zero, como uma flor fresca que se abre a cada instante pela primeira vez: “espírito zen, espírito de principiante”.

Começamos por estabilizar durante uns breves momentos a atenção no corpo como um todo ou numa região apenas, como atrás descrito. Entramos então mais fundo, numa dimensão mais interna e subtil de nós mesmos, a respiração. O método mais simples consiste em respirarmos apenas como natural e espontaneamente o fazemos, sem alterar nada, e focarmos plenamente a atenção nessa experiência, embora uma parte fique livre para estar consciente da própria focalização. Procuramos sentir o ar a entrar e a sair, acompanhando-o ao longo de todo o percurso, mantendo a mente focada em todas as sensações que isso provoca. Como sempre, é uma atenção nua, que repousa no inspirar e no expirar sem comentários, sentindo tudo o que está a acontecer sem juízos, rótulos ou comparações. Mantemos a atenção no fluxo e refluxo da respiração, como uma maré que sobe e desce ao seu ritmo natural, e descontraímos totalmente, sem nenhum esforço adicional à simples manutenção do foco. Como diz um texto antigo, a mente repousa na respiração como uma borboleta numa flor, docemente, sem tensão.

Deixamos que os pensamentos, emoções e imagens venham e vão, no seu fluxo habitual, sem lhes darmos qualquer importância, procurando apenas manter a atenção na respiração, sem nos envolvermos com eles e sem acrescentar mais pensamentos àqueles que espontaneamente surgem. Se nos distrairmos com os pensamentos ou com outra coisa qualquer, como o que se passa à nossa volta, os estímulos externos, damos por isso e regressamos imediatamente à respiração, sem perdermos tempo e agitarmos a mente com juízos, comentários e autocríticas.

Ao respirar assim, plenamente atentos, entramos cada vez mais em contacto com uma dimensão de nós sã, simples e natural, livre das complicações, preocupações, problemas e sofrimentos conceptuais e emocionais da mente dominada pela ficção da separação e por tudo o que disso resulta: medo, insegurança, avidez, apego, aversão e indiferença. A respiração consciente revela-se assim um espaço de sanidade, frescura e abertura de que sempre dispomos e aonde podemos regressar a qualquer momento. Um espaço de encontro connosco próprios, mas numa dimensão de nós que, ao mesmo tempo que é mais íntima, menos fechada está em si mesma: pelo contrário, ao inspirar e expirar sentimos a evidente interconexão com a totalidade dos seres e do mundo. Na verdade a respiração é a presença em nós do fluxo da vida e atender a ela conduz-nos a sentir e descobrir a interconexão com tudo o que existe, comungando o mesmo fluxo vital universal. Inspiramos o que os outros expiram, expiramos o que os outros inspiram, não existimos nem vivemos separados e isolados, fora da comunhão e da osmose com esse fluido que envolve, banha e impregna tudo: humanos, animais, plantas, Terra, universo. Quanto mais entramos na atenção plena ao respirar, mais a percepção do corpo se aprofunda e dilata: é um corpo aberto, sem os aparentes limites da pele, um corpo que acolhe em si o mundo ao inspirar, um corpo que se entrega ao mundo ao expirar. Um corpo-mundo. Podemos mesmo questionar se somos nós que respiramos ou se não somos antes respirados... Se somos nós que respiramos ou se é o inteiro unimultiverso que nos respira... Talvez na nossa aparente expiração sejamos inspirados por tudo e na nossa aparente inspiração sejamos expirados por tudo... Sentir e reconhecer isto pode levar-nos muito longe, a um profundo despertar da consciência para além das ficções do ego, para além da ficção do ego ou do eu separado.

Se não conseguimos acompanhar todo o percurso do ar a entrar e a sair, focamos a atenção onde isso é mais evidente. Pode ser por exemplo apenas a sensação do ar a entrar e a sair pelas narinas. Se for possível acompanharmos a inspiração até ao seu limite, sentimos até onde os pulmões se enchem e a partir de onde se esvaziam. Aceitamos a respiração tal qual se processa, seja mais profunda ou mais superficial.

Terminado o período que destinámos a esta sessão, esquecemos a respiração, abandonamos todo o foco da atenção e deixamos que esta se abra completamente na meditação sem objecto ou presença aberta, ao mesmo tempo que repousamos as mãos sobre os joelhos, caso estejam uma sobre a outra. Descontraímos profundamente, física e mentalmente.

Passamos depois ao estiramento da coluna e à pós-meditação. Com a evolução da prática, podemos começar a conciliar a abertura da atenção, sem qualquer foco ou suporte, com a consciência do corpo em movimento no estiramento e na pós-meditação. É como se o corpo, ao estirar-se, fosse uma árvore que crescesse e se expandisse em pleno espaço, dele inseparável. A pós-meditação também pode começar a experimentar-se assim: estamos completamente abertos a tudo e ao mesmo tempo conscientes de cada coisa que fazemos"

- Paulo Borges, O Coração da Vida. Visão, meditação, transformação integral, Lisboa, Edições Mahatma, 2015, pp.105-107.

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