sábado, 23 de agosto de 2014

Uma Nova Aliança


A civilização ocidental - herdeira da tradição judaico-cristã, mesmo na sua actual versão laica, ateia ou agnóstica - teve até há uns séculos na ideia de um Deus criador e todo-poderoso um forte limite aos desejos humanos: perante um mundo igualmente criado por Deus, o ser humano deveria abster-se de o explorar para moderar os seus apetites e nele contemplar acima de tudo a presença divina. Atingir a salvação, após a morte, mediante uma vida segundo os mandamentos divinos, era o objectivo ideal da vida humana, que orientava o seu desejo para um infinito pensado como exterior a si e ao universo.

Com a “morte de Deus” esse limite desapareceu e a humanidade ficou livre para imaginar ser ela a dotada da omnipotência de realizar todos os seus desejos num mundo doravante visto como estranho e exterior, pois desapareceu a ideia da divindade como a fonte comum do ser humano e do cosmos. O desejo do infinito divino cedeu o lugar ao infinito desejo humano de poder, posse e fruição na Terra. Surgiu assim, com o Iluminismo, a ideia do “progresso”, entendido como a emancipação da humanidade, pelo trabalho, das necessidades do mundo natural e a subordinação da natureza, por via da ciência e da tecnologia, aos fins hedonistas da civilização. O resultado da crença neste tipo de progresso, que se converteu na nova religião laica e globalizada, foram as sucessivas revoluções industriais, a superstição do crescimento económico ilimitado, a devastação dos recursos naturais, a destruição massiva da biodiversidade, a industrialização e o sofrimento da vida animal, a poluição e o aquecimento global, a sociedade de produção, consumo e desperdício. E nada disto parece ter feito a humanidade progredir, a não ser para o triunfo das grandes corporações, o aumento do fosso entre ricos e pobres, a destruição das solidariedades tradicionais e a insatisfação generalizada.

Perante isto, é legítimo perguntar se não urge recuperar ou redescobrir, não só em termos individuais mas também sociais, algo equivalente à função tradicional de “Deus”, que restaure a unidade entre a humanidade, a natureza e o cosmos e reoriente para si o desejo humano de infinito, impedindo que se volte destrutivamente para a natureza e os seres vivos. Cremos que isso passa muito simplesmente por recordar o que significa etimologicamente “Deus”, procedente da raiz indo-europeia dei, que designa “o que brilha”, a irrupção da luz nas trevas. Deus pode não ser assim uma entidade exterior ao ser humano e ao mundo, mas a própria luz da natureza profunda e comum de todos os seres e de tudo o que existe que, ao irromper na consciência, dissipa as trevas da dualidade entre o eu e o mundo, entre nós e os outros, entre cada ser humano, todos os seres vivos, a Terra e o inteiro universo. Sabemos por testemunhos milenarmente convergentes que essa luz surge na mais profunda experiência espiritual, meditativa e contemplativa, que dispensa qualquer crença religiosa. Creio que essa luz pode e deve ser o novo foco do nosso inato desejo de infinito e o alimento de uma espiritualidade laica, trans-cultural e trans-religiosa, aberta a todo o tipo de crentes e não-crentes, que nos resgate das falsas Luzes do progresso iluminista e seja o centro de um novo paradigma de civilização menos dualista e mais compassiva e empática com todos os seres vivos e a Terra. Creio que essa luz, que não é uma ideia ou crença mas uma experiência e não necessita que lhe demos qualquer nome – nem sequer o de “luz”, pois transcende todas as palavras, conceitos e imagens - pode e deve ser o centro de uma Nova Aliança entre o ser humano, todos os seres vivos e o universo. Creio que essa luz é a do Aqui-Agora em que sempre estamos. Creio, ou melhor, sei que essa luz somos Nós. Ou seja, todo o Unimultiverso.

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