terça-feira, 10 de junho de 2014

No 10 de Junho - Um desígnio para Portugal


Muitos de nós partilhamos do mesmo sentimento de Álvaro de Campos, expresso nestes versos: “Pertenço a um género de portugueses / Que depois de estar a Índia descoberta / Ficaram sem trabalho”. Sentimos com efeito que nos falta um ideal comum e um desígnio colectivo, que faça da sociedade portuguesa mais do que uma amálgama caótica de indivíduos e grupos com interesses antagónicos em contínua disputa. Falta um desígnio e uma comunhão de princípios, valores e objectivos que congregue energias dispersas e faça de Portugal uma verdadeira comunidade. Após a fundação e expansão territorial, após a aventura marítima e o fascínio de África, do Oriente e do Brasil, com os seus ambíguos resultados, após a crescente desilusão do El Dorado europeu, sentimos cada vez mais Portugal como uma nau errante, ao sabor dos ventos e marés da economia e à mercê da pirataria financeira internacional. E o português, desenganado da política e dos políticos, à espera de um D. Sebastião que o liberte da tarefa de despertar da sua passividade, definha na “apagada e vil tristeza” de que falou Camões, sem horizonte de futuro e golpe de asa para nele se lançar, sem aquela motivação de um grande desafio ou causa que o leve a transcender-se e a dar o seu melhor, como aconteceu quando da solidariedade com Timor.

Esse desígnio e esse desafio, essa comunhão que nos devolva o sentimento de pertença a um destino comum, com princípios, valores e objectivos partilhados, não virá hoje dos canais tradicionais, em franca crise e decadência, seja o Estado, a Igreja, a família ou a escola, pesem as louváveis excepções. Tem de ser toda a sociedade, desperta pelos indivíduos, grupos e forças mais conscientes, a mobilizar-se para repensar o sentido da nossa existência colectiva e histórica como nação. Creio que, perante os desafios do nosso tempo, perante os riscos de colapso económico-financeiro, social e ecológico, o grande desígnio só pode ser o de promover uma cultura da paz e da solidariedade global e integral, que abranja o homem, os seres vivos e toda a Terra. Perante a crescente abdicação do Estado português diante da banca e da finança internacional, a sociedade civil deve organizar-se mediante uma convergência e coordenação dos movimentos e associações que cuidam o outro, seja o homem, o animal ou o planeta. Eles e todos os indivíduos movidos pelo altruísmo solidário são o que há de mais são em Portugal e só deles pode vir uma regeneração do país com o supremo desígnio do bem comum. Há que ver que todos os que se dedicam à solidariedade social, à protecção dos animais, das minorias e dos sectores mais desfavorecidos da população, à defesa das crianças, das mulheres e dos idosos, à luta contra a fome e a pobreza, à busca de alternativas espirituais, culturais, educativas, terapêuticas, económicas, ecológicas, sociais e políticas, estão a caminhar no mesmo rumo, o de uma nova civilização, mais sã, consciente, ética e justa.

É fundamental que essas pessoas, associações e movimentos, em vez de caminharem separados, dêem as mãos e concertem esforços, constituindo-se como uma ampla força social de onde saia uma nova classe política, de verdadeiros servidores do bem comum, que façam com que a política se subordine a critérios éticos e o Estado não abdique do seu dever de apoio aos mais desfavorecidos. Viveremos então novos Descobrimentos, mas desta vez no nosso território e em nós mesmos, sem violentar nem explorar ninguém. Esta nova aventura deve ser feita em companhia de todos os que, em todos os povos, nações e culturas, caminham no mesmo rumo, o da regeneração do homem, da vida e da Terra. Sem prejuízo dessa universalidade, devemos procurar estabelecer relações estratégicas com os movimentos afins nas nações lusófonas, ibéricas e mediterrânicas.

Há que comemorar no 10 de Junho não o Portugal passado, que hoje morre lentamente, mas o outro Portugal que no presente já renasce como semente alternativa que, plantada numa civilização moribunda, faz do seu cadáver o húmus do futuro.

- Paulo Borges, in "Quem é o meu próximo?", Lisboa, Mahatma, 2014, pp.146-147.

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