terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Eusébio


Que fique claro que reconheço e aprecio o enorme talento futebolístico de Eusébio. O que é todavia digno de ser reflectido, por ocasião desta onda emocional em torno da sua morte, é a tremenda necessidade que os portugueses, e com eles quase todos os povos, têm de mitos, símbolos e ídolos colectivos. Tal como é significativo, e dá que pensar, que quase sempre esses mitos, símbolos e ídolos colectivos sejam governantes, políticos, artistas e desportistas e muito mais dificilmente heróis éticos que consagraram a sua vida ao serviço desinteressado do bem comum. É muito mais fácil alguém tornar-se um mito em vida e após a morte se for um catalisador visível e espectacular de fortes emoções colectivas, ainda que no fundo não possa servir de exemplo de vida para ninguém, do que se for um obscuro cuidador e servidor da vida dos outros, sejam humanos ou animais. Todavia, como no fundo se sabe que essa mitificação é vã e desprovida de fundamento, procura-se justificá-la com razões mais veneráveis. É por isso que já se compara Eusébio a Nelson Mandela (e sabe-se lá a quem se comparará um dia Cristiano Ronaldo). É na verdade muito mais fácil fazer de um ser humano poderoso, famoso e popular um herói ético do que de um herói ético um homem popular, famoso e poderoso (pela recordação e cultivo do seu exemplo). É por isso que mais facilmente Afonso Henriques, Vasco da Gama, Salazar, Amália, Eusébio, Figo ou Cristiano Ronaldo são símbolos nacionais do que um Aristides de Sousa Mendes, que arriscou a sua posição e vida para salvar a dos outros, ou um pensador e educador como Agostinho da Silva que sempre viveu de acordo com ideais nobres, sendo o único professor a ser demitido do ensino oficial em 1935 por se recusar a cumprir a Lei Cabral, que obrigava os funcionários públicos a uma declaração de não pertencerem a nenhuma sociedade secreta (ele que não pertencia a nenhuma e passou a viver de explicações, tendo já mulher e filhos). Porque será que o povo e o poder instituído, numa estranha aliança, veneram os primeiros e tudo fazem para esquecer os segundos ou remetê-los para um modestíssimo lugar na memória colectiva? Seria demasiado perigoso e desestabilizador do sonambulismo mental e social dominante assumir como exemplos a seguir, não o poder, os grandes feitos históricos, a fama e a popularidade, mas a ética do despojamento do egoísmo e a missão de despertar consciências? Sim, seria demasiado perigoso: arriscávamo-nos a ser um país a sério e a ter um sentido para a vida, em vez de andarmos anestesiados com emoções fugazes da opressão em que vivemos e suportarmos tanta mediocridade reinante.

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