sexta-feira, 6 de junho de 2014

A unidade de todos os seres no pensamento hindu (o meu artigo para a revista CAIS de Julho)



Na Índia os mais antigos hinos do Rgveda, apesar de não formularem nem implicarem “nenhum sistema doutrinal”, mostram “uma tendência para religar a um princípio unitário a multiplicidade dos fenómenos” e dos seres [1]. Diz-se assim que “todas as criaturas” se apoiam no “Uno”, que por sua vez se fixa no “umbigo do não-Nascido” [2], o imanifestado. Um outro hino considera que o sacrifício pelos deuses do purusa, um gigante antropomórfico primordial, identificado à totalidade do “universo”, é a origem de “todos os seres”, com um quarto apenas de si, enquanto os três outros quartos permanecem no domínio da imortalidade celeste. Esse quarto do purusa, termo que na filosofia Sāmkhya designa a Consciência pura, é o que se expande cosmogonicamente “em todos os sentidos, / em direcção às coisas que comem e que não comem”, alusão ao animado e ao inanimado [3]. Também Vāc, a “palavra” cosmogónica, se expande desde as “águas” originárias “através de todos os seres”, apoderando-se “de todas as existências” [4]. Já no Atharvaveda se diz que “Vena [o “vidente”] viu em segredo a (morada) suprema, / onde todas as coisas têm uma forma única” [5]. No mesmo texto se diz que “Prajāpati [o “senhor das criaturas”] entra na matriz, no interior”, onde, “sem ser visível, assume nascimentos múltiplos”, gerando “todo o universo” com a “metade” visível de si, enquanto a outra permanece imanifestada, sem “sinal distintivo” [6]. A geração do mundo é assim apresentada como a metamorfose e transmigração da sua fonte criadora na totalidade dos seres, que lhe são consubstanciais, pelo menos a respeito da sua dimensão manifestada.

Significativo é também o longo hino à Terra, ainda no Atharvaveda, que a invoca como a “Mestra do que foi e do que será”, “que sustenta de muitas maneiras o que tem sopro e movimento”, a “portadora de todas as coisas” e o “sustento” feminino que oferece repouso a “todos os seres animados”. A Terra remonta às “origens”, onde foi “uma Onda sobre os mares”, possuindo um “coração imortal” que, “coberto de Verdade, se oculta no firmamento supremo”. Dela nascidos, nela circulam os “mortais”, bípedes ou quadrúpedes. Ela é também a “mãe das plantas” e a “universal genitora”, onde habita Agni, o deus do Fogo, tal como em todos os seres por ela gerados: plantas, águas, pedras, humanos e animais. Mantenedora de todos os seres e “guardiã do mundo”, a Terra é invocada para conceder aos humanos uma vida longa, protecção, prosperidade e poder, numa aspiração a que, fazendo crescer quem a invoca, ela mesma cresça, numa comum exaltação: “queira a Terra nos fazer crescer, crescendo ela própria!”. Num dos momentos da invocação, aspira-se precisamente a que o que se extrai da terra possa “recrescer prontamente”, sem jamais se atingir os seus “pontos vitais”, o seu “coração” [7]. Estamos numa esfera de reverência e respeito religioso pela Terra, muito distante da sua objectivação, na civilização industrial contemporânea, como um suposto manancial inerte de recursos que a humanidade pode explorar ilimitadamente a seu bel-prazer.
            
Um texto que surge ainda no final do Yajurveda, embora venha a ser incluído nos Upanishads, estabelece uma já anterior identificação entre o “Uno” (ekam) - a essência universal, por vezes referido como o brahman - , com o ātman. O “Uno” está simultaneamente “dentro” e “fora” de “tudo o que existe”, sendo-lhe transcendente e imanente. É por esse motivo que “todas as essências” estão “no Si” (ātman) e este “em todas as essências”, sendo-lhes “equivalente” na medida em que “penetra tudo”. Meditar nisto liberta de toda a “vertigem” e de todo o “sofrimento” [8].
            
Também no Brihadāranyaka Upanishad se afirma que o purusa ou o brahman primordial emanam tudo de si, saindo da sua solidão unicitária [9]. Falando agora do ātman, metaforiza-se assim o modo dessa emanação:

            “Tal como uma aranha emerge [de si mesma] mediante [tecer] fios [do seu próprio corpo], tal como pequenas faúlhas se erguem de um fogo, assim também deste Si todos os sopros vitais, todos os mundos, todos os deuses e todos os seres contingentes se erguem em todas as direcções” [10].

Todos os seres e fenómenos são assim consubstanciais ao ātman: “[…] estes mundos, estes deuses, estes seres contingentes, este Tudo, nada são senão o Si!” [11]. Assim se compreende a célebre afirmação do Chāndogya Upanishad, em que um pai revela ao filho que a sua natureza profunda é a natureza profunda de todo o universo e de todas as coisas: “Esta mais subtil essência, - todo o universo a tem como o seu Si: Isso é o Real: Isso é o Si: Isso és tu [tat tvam asi], Svetaketu!” [12].
            
Do reencontro – não necessariamente por via religiosa – desta experiência de não separação entre si, o mundo e todos os seres depende hoje cada vez mais o futuro da aventura humana sobre a Terra.





[1] Louis RENOU / Jean FILLIOZAT, L’Inde Classique. Manuel des Études Indiennes, I, Paris, Librairie d’Amérique et d’Orient / Jean Maisonneuve, 1985, p.335.
[2] Cf. Rgveda, X, 82, in Hymnes Spéculatifs du Veda, traduzidos do sânscrito e anotados por Louis Renou, Paris, Gallimard, 1985, p.80.
[3] Cf. Rgveda, X, 90, in Ibid., pp.97-100.
[4] Cf. Rgveda, X, 125, in Ibid., p.124.
[5] Cf. Atharvaveda, V, II, 1, in Ibid., p.141.
[6] Cf. Atharvaveda, X, 8, in Ibid., p.167.
[7] Cf. Atharvaveda, XII, 1, in Ibid., pp.189-202.
[8] Cf. Yajurveda, Vāj. Samh. XL, in Ibid., pp.222-223
[9] Cf. Brihadāranyaka Upanishad, I, IV, 1-5 e 9-10, in R. C. ZAEHNER, Hindu Scriptures, traduzidas e editadas por R. C. Zaehner, s. l., Everyman’s Library, 1966, pp.41-42 e 44.
[10] Cf. Ibid., II, I, 20, p.53.
[11] Cf. Ibid., II, IV, 6, p.56.
[12] Cf. Chāndogya Upanishad, VI, VIII, 7, pp. 137-138.

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