sexta-feira, 24 de maio de 2013

Lisboa, a vocação de Portugal e o novo paradigma civilizacional (texto publicado no número de Maio da revista CAIS)



A actual globalização hegemónica, de matriz local, europeia-ocidental, dominou o mundo nos ciclos imperial e colonial e domina-o ainda num neocolonialismo económico-financeiro. Esta globalização, sobretudo científico-tecnológica, económico-financeira e mediática, tem promovido a opressão e a exploração das nações mais pobres, cavando um fosso entre o Norte e o Sul, e suprimido vertiginosamente a diversidade cultural e a biodiversidade. Com ela o antropocentrismo predominante na cultura europeia-ocidental assume consequências cada vez mais dramáticas, pelo impacto tecnológico, pela explosão demográfica e pela insustentabilidade de um modelo de crescimento económico dominado pelas leis de mercado, pela produção e pelo consumo e pelo apetite do lucro, mediante a instrumentalização dos seres humanos, dos animais e da natureza.

Constatamos hoje que este paradigma está esgotado, causando um crescente mal-estar, sofrimento, injustiças e desequilíbrios a nível global. Um dos maiores esforços da própria cultura europeia-ocidental é para a crítica dos modelos que exportou para todo o mundo e para a busca de um paradigma alternativo, que preserve o que houver de melhor no passado com uma diferente orientação, que respeite o valor intrínseco dos seres vivos, humanos e não-humanos, e do mundo natural. O multiculturalismo é uma realidade incontornável da pós-modernidade e dispomos hoje de múltiplos modelos culturais e epistemológicos alternativos. É possível e urgente uma outra globalização, não opressora, exploradora e neocolonial, mas universalista ao mesmo tempo que baseada no reconhecimento e valorização das diferenças culturais, étnicas e nacionais. Uma globalização alternativa, baseada na partilha dos recursos espirituais, culturais, éticos, filosóficos e científicos desenvolvidos por diferentes povos e tradições, em distintos momentos históricos e diferentes espaços geográficos. A cultura europeia-ocidental deve abrir-se ao(s) outro(s), não numa atitude de “tolerância” condescendente, mas na escuta, acolhimento e encontro autênticos que nessa(s) alteridade(s) procure acrescentar o que lhe falta e moderar o que tem em excesso, partilhando ao mesmo tempo, sem preconceitos de superioridade ou inferioridade e sem pretensões de ensinar e impor, o que tem de mais próprio.

Após haver liderado a primeira modernidade com os Descobrimentos, sendo pioneiro na globalização do paradigma eurocêntrico, que resultou no ciclo imperial, colonial e neocolonial actual, mas tendo sido também precursor no encontro e diálogo com povos e culturas com outras e muita distintas visões e experiências do mundo, Portugal deve hoje reorientar essa vocação histórica de mediador entre povos e culturas para trazer para a Europa o melhor das culturas planetárias e contribuir para uma ampla plataforma de diálogo intercultural que vise um novo paradigma civilizacional, mais sábio, ético, sustentável e verdadeiramente universal, conforme a visão dos maiores poetas e pensadores do nosso destino, como Luís de Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Agostinho da Silva. Lisboa, descrita já por Fernão Lopes como “grande cidade de muitas e desvairadas [várias] gentes”, palco das grandes mutações da história de Portugal (1383-1385, 1640, 1910 e 1974), tem uma tradição histórico-cultural inovadora, cosmopolita e universalista e uma posição geo-estratégica que a vocaciona e habilita para ser um dos centros vitais deste processo. Lisboa, voltada pelo Tejo para o Oceano e banhada por uma singular luz, deve ser hoje de novo um grande entreposto de especiarias, mas agora as do espírito, da cultura, da ética, da justiça económico-social e da convivência fraterna e harmoniosa, não só entre todos os povos, nações e culturas, mas também entre os seres humanos, os animais, os demais seres vivos e a Terra.

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